quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

De volta

Estamos de volta! Depois de um curto e caloroso verão, voltamos todos ― João Pedro, Antônio, Emiliane e eu ― para fechar este ano e abrir o próximo.


Nesses últimos dias aconteceram tantas coisas e foram tantos os ensejos filhosóficos que não sei nem por onde começar.

Não, talvez eu saiba...

Vou recomeçar mostrando o presente que ganhei no Natal.

Dia 24 de dezembro, lá pelas oito da noite, eu e os meninos estávamos deitados na cama para assistir minha namorada (que é como eles tratam a mamãe e esposa do papai) se aprontar para a ceia quando, de repente, o João Pedro me presenteia com este verso:

“Papai, o meu pé é que nem o da mamãe, mas eu sou igualzinho a você!”.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Crianças com deficiência, pais especiais

Anteontem soube pelo blog da Melina (O lado M de mamãe) que em 3 de dezembro se comemorou o dia internacional do deficiente físico.

Ontem, por coincidência, conversei ao telefone com Claudia Werneck que há anos escreve, reflete e trabalha muito pela inclusão de crianças com deficiência. Ela é Superintendente Geral da Escola de Gente, uma das mais corretas ONGs que já conheci (e posso dizer que conheço “profundamente” algumas centenas de organizações não governamentais, porque trabalhei durante anos avaliando a contabilidade e qualificando as ações de todas as OSCIP federais e de grande parte das entidades filantrópicas). A Escola de Gente – Comunicação em Inclusão foi fundada em abril de 2002 “por profissionais de comunicação e ativistas [...] a favor da inclusão de grupos em situação de vulnerabilidade na sociedade, especialmente crianças, adolescentes e jovens com deficiência”.
Curiosamente, não falamos sobre o tema. Tratamos de outros assuntos menos relevantes, mas não menos urgentes.

Hoje, a Mi me deu boas notícias da primeira cirurgia (outras oito estão previstas) a que teve de submeter o filho mais novo de um casal de amigos. Disse-me, também com os olhos, o quanto ela admira a força, a coragem, e a determinação dos pais de uma criança com algum tipo de deficiência.

Há quem se refira por pura delicadeza às crianças com deficiência como “crianças especiais”. Tudo bem, pois neste caso a intenção também vale e todo cuidado é pouco. Mas, no fundo, acho que são os pais dessas crianças que são mesmo especiais.

Evidentemente, nem todos os pais nascem assim. Muitos vão se tornar, em razão do amor e da atenção especial que seus filhos requerem. Não sem sofrer, não sem esmorecer, não sem duvidar e, sobretudo, não sem reconhecer seus próprios limites e suas inúmeras deficiências. O filho eterno, livro de Cristovão Tezza, e também o filme-documentário Do Luto à Luta, de Evaldo Mocarzel, tratam com franqueza das dificuldades que os pais devem enfrentar e superar até se tornarem — sem querer — pessoas especiais (para seus filhos e para todos nós).

Sei que nem todos os pais dão conta do recado. Alguns tentam fugir do “problema” e abandonam seus filhos. Outros, que não podem fugir, amargam uma vida de isolamento e renúncias forçosas para tentar esconder o “problema”. Por outro lado, mas nessa mesma linha, há pais que promovem a superexposição de seus filhos para que sejam considerados especiais, ou melhor, para que recebam (meio que por tabela) a atenção, a comiseração e a compaixão das pessoas próximas. Agem de modo que a deficiência do filho os projete socialmente como pessoas predestinadas (por Deus?) a serem especiais e, portanto, melhores do que realmente são. Só não causa abjeção porque, quase sempre, tal comportamento é decorrência de uma grave patologia. Tive o azar (ou a sorte, não sei) de conhecer um único caso.

Felizmente, tenho encontrado pelo caminho muitos pais verdadeiramente especiais, que fazem da paternidade e da maternidade de crianças com deficiência um patamar de amor e civilidade que todos deveríamos tentar alcançar. Basta levar a condição de pai/mãe a sério para descobrir e viver o festejado amor incondicional. Todavia, creio que o patamar erguido e sustentado por esses pais especiais está bem mais além do incondicional: suspeito que esteja naquele mais alto ponto do mais azul do céu que só pode ser visto com os olhos do coração.

Segue a Parte 2 do documentário do Luto à Luta disponível integralmente no youtube:

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

1ª Exposição de "Arte" dos Meninos

Estes são os 10 convites que João Pedro e Antônio prepararam para oferecer aos seus familiares e amigos. São poucos para distribuir, mas o suficiente para convidar a todos que queiram conhecer tanto o espaço de arteterapia Bem Me Quer quanto o "trabalho" deles (e de outros meninos e meninas).



"Eu já sei de tudo!"

Outro dia, tomando banho com o Antônio, tentei corrigi-lo pela última vez quanto ao emprego do pronome oblíquo "mim" como sujeito do verbo no infinitivo. 
Ele me disse: "Papai, pega o sabão pra mim lavar o chão".
Como de costume, repeti sua frase de acordo com os padrões cultos da língua portuguesa (embora Celso Cunha e Lindley Cintra, autores de minha gramática predileta, já autorizem o uso da forma oblíqua) dizendo: "Para eu lavar o chão".
E é claro que ele retrucou: "Não, papai, não é para você; é para mim lavar".
Acho que esta competência para perceber a distinção ele só vai adquirir depois dos cinco anos.
Por ora, desisti.
No entanto, ele já é capaz de perceber as palavras que saem errado. Por exemplo: hoje ele tentou dizer "esmagar" e saiu "esgamar"; além do mais, ele ainda não consegue pronunciar o "r" entre consoantes (diz "tiste", "pato" e "bulaco" ao invés de "triste", "prato" e "buraco") e ao final da palavra o "r" tem som de "i" ("apontador" soa "apontadoi"). Minha família, em especial minha mãe e meu tio Betão, adoram ouví-lo falar errado. E realmente é engraçadinho. Mas eu não me dobro e sigo repetindo corretamente depois dele: ele me pede para desligar o "computadoi" e eu digo que já vou desligar o computadoR.

Bom, voltando ao banho, chamei a Mi para enxugá-lo e, então, ele fez alguma coisa errada (faz apenas três dias e não me lembro). A mãe o repreendeu e ele começou a chorar sentido. A Mi tentava explicar, mas ele repetia sem cessar: "Mamãe pála de fala, eu já sei de tudo... eu já sei de tudo... eu já sei de tudo, mamãe".

O pior é que as vezes eu desconfio que eles sabem mesmo. Nós é que não.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Comentário n'o lado M de mamãe...


Era para ser um comentário no blog da Melina, o lado M de mamãe... , sobre o texto de ontem em que ela trata de agressões na escola. Mas como estou de férias e um pouquinho resfriado, fui escrevendo, escrevendo e virou esta nova postagem.

Em julho de 2008 registrei no Livro dos Meninos (meu quase diário de bordo) que presenciei a Emiliane esbravejando com o João Pedro — que na época tinha 4,5 anos — porque ele havia apanhado do Tutuzinho (a criança mais nova da sala dele, então com uns 2 anos e pouco) com um pedaço de pau. Vi o corpo dele todo marcado pelas pancadas e fiquei injuriado.
As pauladas extrapolavam em muito nossos limites, embora soubéssemos que o Tutuzinho batia com freqüência em todas as crianças mais velhas — estávamos acostumados com uma mordida, um arranhão, um tapa e outras “lesões corporais leves”. Afinal de contas, podiam ferir gravemente.
Mas, naquele momento, o problema para gente não era o Tutu bater: já vínhamos discutindo regularmente o “caso” nas reuniões de pais, mães e professoras (os pais do Tutuzinho eram super tranqüilos e excelentes pessoas) que aconteciam todo mês na Moara, nossa escola Waldorf de Brasília. O problema era que João Pedro não havia reagido como ensinamos: se afasta do perigo evitando a agressão e avisa a professora; pronto. Nunca diríamos para ele bater de volta (“olho por olho”), mas de modo algum queríamos que ele apanhasse.
E para piorar parecia que ele não estava dando a mínima para nossa conversa, pois enquanto falávamos João tentava se distrair. Então, quando ele nos deu as costas para ir brincar, eu perdi a paciência. E num salto o segurei firme pelo braço e lhe dirige em tom ameaçador a pergunta mais cretina de minha vida: “— Afinal, João Pedro, você gosta de apanhar?”
Na lata ele me respondeu: “— Gosto”.

Fiquei com cara de bunda e depois passei dias, inconsolável, pensando um bocado de besteiras do tipo “estou criando um maricas” ou “melhor trocar o Bambi pelo Rambo IV” ou “vai pro colégio militar amanhã” e por aí fui.

Demorou um tempinho até que eu pudesse me dar conta de que para o João Pedro a paulada do Tutuzinho não era uma violência. Logo eu que vivia defendendo a “perspectiva da criança” não havia me dado o trabalho de tentar compreender qual o significado do ato para o João. Equivocadamente, tentei forçá-lo a ver como eu via: risco iminente de morte.

Hoje tenho certeza que ele consegue distinguir suficientemente uma brincadeira perigosa de uma violência mesmo moderada. Não faz muito tempo, contei aqui, na postagem Entre tapas e beijos, como ele se safou da ameaça de um amiguinho.

Com o Enzo a coisa me parece um pouco diferente. Talvez mais fácil por um lado (dele) e mais difícil por outro (de menina e da escola).
Mais fácil porque se o Enzo te contou que levou uma mordida acho que ele queria saber se isso é certo ou se é errado para você, o que também significa que ele apreendeu os significados que sua família atribui a mordidas e a arranhões em geral (imagino que ele tenha ouvido, noutras ocasiões, que é errado). Isto é, você não precisa se preocupar em dizer a ele exatamente o que fazer porque ele (é o que me parece) já assimilou uma regra de conduta ainda mais complexa do que a autodefesa: o que é errado deve ser evitado ou então corrigido. Pode ficar tranqüila e orgulhosa com essa aquisição evolutiva.
O outro lado, mais difícil a meu ver, é aonde desconfio que está o perigo: a professora e/ou a escola não estão preparadas para fazer do fato “menininha que bate” uma oportunidade pedagógica para todos, sobretudo para os pais da criança. No fundo, a educação escolar ainda não sabe o que fazer com o conflito (da perspectiva do adulto). Aqui em Catanduva infelizmente não há uma única escola que tenha estruturas e rotinas capazes de transformar problemas eventuais em possibilidades de formação e transformação de professores, pais e alunos. Isso inclui o nosso Colegião. Quando me refiro a estruturas e rotinas estou pensando em coisas simples do tipo reuniões periódicas, encontros semanais e atividades conjuntas que nos permitam conversar, trocar idéias, resolver problemas e planejar conjuntamente o futuro dos nossos filhos. Ou não. Pode ser que numa dessas ocasiões a gente se dê conta que os pais dos coleguinhas de nossos filhos não valem uma conversa sobre o clima (“vai chover?”). Mas aí, pelo menos, a gente não hesita em chamar o Conselho Tutelar para dar conta do recado. Brincadeirinha.

Apesar de tudo, resta a esperança de que a mãe da menininha e a coordenadora pedagógica da escola do Enzo leiam o seu blog. Pensando bem, vou mandar um e-mail recomendando a leitura. Tudo bem?





PS: Em tempo, quando fui com a Mi “conhecer” a Coordenação do Infantil do Colegião perguntei diretamente como a escola lidava com conflitos e exemplifiquei com agressões entre crianças. Na Moara, em 2005, além de perguntar a mesma coisa também questionei o nível de inadimplência, pois queria saber se a existência de uma comunidade escolar (formada por pais, alunos e mestres) resultava na prática em pagamentos em dia, em respeito com os profissionais e com os demais pais.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Lista do que cada moleque realmente precisa...

Conto os anos de minha experiência como pai somando as idades do João Pedro e do Antônio: 7 de um com 3,5 do outro e lá vou eu para a segunda década de paternidade. Faço desse jeito porque cada filho é um universo, é uma pessoa com suas singularidades. Ou seja, não dá para ficar repetindo com o segundo (e com o terceiro, e com o quarto... pra quem tem coragem) apenas aquilo que deu certo com o primeiro. O desenvolvimento intelectual, físico e moral de uma criança exige plano próprio e específico. Não à toa as boas escolas de hoje vivem se desdobrando para tentar conciliar a execução de seus Projetos Político-Pedagógico com a formação peculiar de cada um; e, no entanto, sabem que não há chance alguma de acertar, por maior que seja o esforço, sem a participação dos pais e das próprias crianças. Resumindo bastante, cada criança precisa de um plano de educação individual para ser realizado em coletividade, isto é, que lhe permita desenvolver ao mesmo tempo sua autonomia privada (como pessoa) e sua autonomia pública (como cidadã).

Certa vez ouvi de um pedagogo português, Antonio Nóvoa, uma recomendação intrigante: desconfie desses professores que proclamam de boca cheia (e com um certo fastio) terem "mais de 30 anos de experiência", porque, na maioria das vezes, eles experimentam o desafio da educação de crianças apenas nos primeiros anos de magistério e nos demais vão repetindo o que "deu certo". O mesmo pode se aplicar aos pais com mais de um filho. Antigamente, numa família de oito filhos como a do meu pai, aceitava-se -- por razões de época -- que os mais velhos repassassem aos mais novos aquilo de bom que haviam aprendido. Quem brincou de telefone-sem-fio pode imaginar quais as consequencias disso tudo. Por outro lado, também não estou reforçando a tese de que cada filho deva ser criado como se fosse único, ou melhor, como filho único. Justamente porque as famílias no mundo e no Brasil estão diminuindo de tamanho (segundo o IBGE a média de filhos em 2001 era de 1,6) entendo que o convívio (as vezes desregrado) entre crianças diferentes vai se tornando cada vez mais necessário, necessariamente um projeto coletivo.

Enfim, não estou negando a existência de princípios, de condutas e mesmo de algumas coisas que possam ser atribuídas às crianças em geral. Claro que há. Aqueles best-sellers sobre filhos, do tipo "Como criar meninos" ou "Receita para fazer uma criança feliz" ou "Transforme seu filho num milionário de sucesso (já na gestação)", estão cheios de generalizações que costumam ajudar, desde que não os consideremos verdadeiros manuais de instrução para a educação do Enzo, da Aina, da Maria Fernanda, do Miguel, do Lucas...

Bom, por mais intensa que pareça ser a experiência com os meus dois meninos não me sinto em condições de enunciar generalizações educacionais ou quaisquer outras fórmulas que o valham. Acho que consegui, contudo, ao fim desses últimos 10 anos de paternidade, montar uma lista do que cada moleque precisa para chegar até os 7 anos de idade com saúde (ainda que com algumas fraturas, cicatrizes e pequenos traumas). A seguir os primeiros dez itens:

1. Ter mãe e pai (mesmo em casas separadas, que significam por extensão: amor, exemplos, limites, história, etc.);
2. Saber nadar;
3. Saber se limpar (principalmente, o próprio pipi);
4. Saber se defender (ou, simplesmente, não apanhar);
5. Ter uma boa lanterna (não vale as de brinquedo);
6. Ter um pedaço de corda (mais ou menos com dois metros);
7. Não ter medo de cavalo;
8. Ter um melhor amigo (muito melhor se for também primo);
9. Saber acender e apagar fósforos (no fundo, controlar o fogo);
10. Ter um belo canivete (sabendo que só poderá usar quando fizer 10 anos);

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Trigêmeos


Estamos em férias. A primeira vez desde que acabou o doutorado. Eu, a Mi, os meninos, meus sogros, minhas cunhadas e meu concunhado. No fundo, bem no fundo, só estamos eu e os meninos, porque não seria justo (se não fosse assim) depois tê-los feito esperar tanto. A Mi não só entende como fica feliz em nos ver assim juntos, feito o mar, o céu e o vento.

Ela cuida da gente (passa protetor solar, nos dá de comer, coloca no banho...) como se fossemos três crianças, três irmãos: seus três filhos, seus trigêmeos. Eu também adoro me sentir irmão do João e do Antônio durante a maior parte do dia.

Cheguei um dia a sonhar com um pouco menos do que isso. Nossa! A vida surpreende mesmo.

Quando li no final da adolescência O apanhador no campo de centeio (de J. D. Salinger) sonhei que a paternidade pudesse ser algo como esta “função” imaginada e descrita por Holden (o protagonista do livro):

[...] ¾ Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto ¾ quer dizer, ninguém grande ¾ a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que queria fazer. Sei que é maluquice.

Acho que achei que ser pai seria como passar o dia todo brincando como criança com meus filhos à beira de um precipício. De alguma forma suspeitava do tamanho da responsabilidade que a paternidade implicava, ainda que extremamente prazerosa e absolutamente gratificante.

Mas hoje, enquanto escuto a respiração dos meninos dormindo se conjugar em harmonia com o barulhinho das ondas, vou descobrindo que ser pai é ainda maior.

domingo, 28 de novembro de 2010

I-n-c-o-n-f-e-s-s-á-v-e-i-s (o que os pais pensam, mas não tem coragem de dizer)

Direto dos Classificados deste domingo:


Pai divorciado


PROCURA, para os fins de semana, bela babá capaz de amar profissionalmente seus filhos durante o dia e, o pai pela noite. Exige-se experiência (nos dois sentidos). Enviar currículo com fotos abundantes para [...].


Compreensível?

domingo, 21 de novembro de 2010

O parto do Antônio

Primeiro vou deixar que a Mi, com sua poesia, conte como foi o parto do Antônio.
Depois apresento minha versão dos fatos, que não é muito diferente: muda apenas a perspectiva.
Ela escreveu o relato abaixo para a seção "Deu errado, mas deu certo" da revista Pais&Filhos. O texto foi publicado na edição de setembro de 2008.
Ainda hoje me dá frio na barriga só de lembrar...

Aconteceu numa segunda-feira de manhãzinha, onze dias antes da data prevista para a chegada do nosso segundo filho, estava grávida de 38 semanas e naquele dia levaríamos à maternidade o plano de parto natural; mas às quatro e meia da madrugada acordei sentindo as primeiras contrações.
Meu marido, José Eduardo, estava dormindo. Uma hora depois do início do trabalho de parto comecei a sentir fraqueza e muito frio, então resolvi acordá- lo. Pedi que ele colocasse um colchonete no corredor de casa e ali fiquei sentindo as contrações, fazendo as respirações e posições que aprendi com a doula que acompanhou minha gravidez.
O trabalho de parto foi ficando cada vez mais intenso; meu marido ligou para o médico e naquele instante percebi que teria o bebê ali, pois senti a cabeça dele coroando e o líquido da bolsa escorreu de uma só vez. O médico, então ao telefone, disse que estava a caminho de casa.
Após falar com o médico, o Du pediu ajuda ao 192, e ainda teve de convencer o atendente que não estava exagerando, dizia que não era pai de primeira viagem e que o bebê estava mesmo nascendo.
Assim que desligou o telefone, ajoelhou-se para amparar nosso bebê, numa contração passou a cabeça e na contração seguinte escorregou nas mãos do pai. E assim veio à luz o Antônio, às 6 horas e 20 minutos daquela abençoada manhã, no corredor de casa e pelas mãos do meu marido.
Ele enrolou nosso bebê num lençol, o colocou em meus braços pra que eu o mantivesse aquecido e foi, mais uma vez, pedir ajuda.
Nesse momento pude ver o rosto do meu filho, ele estava chorando alto e forte. Olhei fundo nos olhos do Antônio, segurei a mãozinha dele e pedi que ficasse tranqüilo, pois eu sentia que estava tudo bem, nós dois estávamos bem. Sua pele enrugada e seus olhinhos miúdos, ora curiosos, ora desconfiados e incomodados pela suave claridade (que chegava ao corredor do nosso pequeno apartamento), me fizeram derramar algumas lágrimas.
O cordão umbilical permaneceu nos ligando durante todo tempo que estivemos ali imóveis, nos olhando e esperando. Quando o cordão havia parado de pulsar eu e o Antônio já nos conhecíamos profundamente.
Devo ter rezado duzentas Ave-Marias em trinta minutos, o tempo que levou do nascimento à chegada do médico e da ambulância. Imaginamos que um dos dois poderia chegar antes. Chegaram juntos.
Nesse momento o cordão foi finalmente cortado, o Antônio mamou bastante, conheceu seu irmão, João Pedro (que acordou sozinho como se nada tivesse acontecido ali, bem ao lado da porta do seu quarto), e adormeceu.
Avisamos nossa família, arrumamos tudo e fomos para o hospital. Lá, o Antônio pesou 3,1kg, mediu 49cm e tomou seu primeiro banho. Ele era um recém-nascido saudável e de muita sorte. Hoje ele está com 1 ano e 6 meses, é um bebê doce, tranqüilo, bonito e inteligente, que adora brincar e bagunçar com seu irmão.
Foi uma vivência forte, inesquecível e maravilhosa. Guardo uma sensação como se tivesse sido tocada por uma Luz Divina, tamanha a intensidade e sincronia de cada detalhe durante o trabalho de parto e o momento do nascimento, em especial.
Mãe, pai e filho pulsando juntos. Eram três corações batendo como se fossem um. Tinha tudo pra dar errado só que deu muito certo, mais do que havíamos sonhado.

Prova de que deu certo e de que continua dando: Antônio e João Pedro.

sábado, 13 de novembro de 2010

Circular do cordão umbilical


Todo mundo já sabe que vivo falando para os meus filhos que eles são guerreiros porque são inteligentes, fortes e têm bom coração. E digo também que a primeira grande batalha de cada um foi vencida no parto, porque nasceram lutando. Sobre a batalha, ou melhor, sobre o parto do João Pedro falei recentemente. Já sobre o triunfo do Antônio, falo amanhã.
Por hoje quero registrar que foi minha mãe quem começou com essa hestória de meninos guerreiros que lutam pra nascer. No fim das contas, com o João e com o Antônio, estou apenas escrevendo os dois capítulos que me cabem.

Nos momentos difíceis minha mãe fazia questão de me lembrar que eu havia nascido com duas circulares do cordão umbilical no pescoço e por muito pouco não tinha morrido. Com orgulho e os olhos rasos d’água, ela, então, costumava contar a hestória de meu nascimento com vida ou a história de como venci a morte ainda bebezinho.
É que há trinta e sete anos a circular do cordão era sinônimo de complicação no parto e de risco de morte para o nascituro, assombrando pais e médicos. Hoje em dia sabemos que não só as circulares são comuns (ocorre de 30 a 40% dos partos) como não trazem grandes perigos, embora tenha muito pai e mãe se descabelando desnecessariamente com a ultra-sonografia que antecede o trabalho de parto.
Na Catanduva de 1973 ainda nem se falava em ultra-sonografia obstétrica e, por isso, minha mãe só veio a saber que eu tinha as duas circulares no pescoço — e que era um menino — quando eu já estava em seus braços são e salvo. Durante o trabalho de parto ela se lembra apenas do Dr. Waldemar Curi pedindo para fazer força: “Vamos turca! Até parece que não come quibe.” Isso ajuda a entender o relato histórico que minha mãe foi construindo enquanto eu crescia, diga-se de passagem, a bem de minha auto-estima. Pois, pelo que ouvia de minha mãe e para minha ignorância de menino, julgava-me uma espécie de Super-Tiradentes: afinal havia me safado da forca "quase" sozinho.

            Os anos se passaram e quase me esqueci dessa minha própria hestória. Até que um dia, no início do casamento, a Mi resolveu me questionar sobre meu “estranho hábito de enrolar o lençol em volta do pescoço” enquanto dormia.
            Na hora fiquei surpreso, porque ela me perguntava como se eu soubesse que o lençol amanhecia todos os dias enrolado ao redor de meu pescoço. E quando eu disse que nunca havia reparado nisso, foi ela quem ficou pasma.
            Refleti um tempo sobre o “hábito” e concluí que, de fato, devia ter sido tão marcante aquela experiência de nascer com o cordão no pescoço que, ao adormecer, automática e inconscientemente recriava aquela relação fazendo uso do lençol. Dei por resolvido o enigma e, mais uma vez, deixei toda hestória de lado.

            No entanto, fui “surpreendido novamente” em 2002, quando fomos a uma festa no Terreiro de Mãe-menininha-do-Gantois, em Salvador. Lá finalmente descobri que as crianças nascidas com circulares do cordão umbilical são filhas do velho Oxalá, conhecido como Oxalufã. Gostei e fiquei feliz com a descoberta, mas não retomei a hestória iniciada por minha mãe.

Aí, em 18 de dezembro de 1973, o João nasceu com a sua circular do cordão. E me dei conta de que era chegada a hora de assumir a minha responsabilidade nessa hestória. E que Oxalá me dê forças para seguir o curso.

Comentando comentário - São Jorge é de Ogum e do Gantois

Não é segredo pra ninguém que da Angélica aceito até provocação barata.
Pois é, ela fez um comentário só pra me dizer que “Jorge é de Capadócia...”.
Dá pra acreditar?

Vai dizer isso logo pra mim que o conheci pessoalmente. Foi o próprio Jorge quem me disse: “sou baiano, ou melhor, soteropolitano, de Federação e, para ser exato, do Gantois”. Me disse ainda que “apesar disso, era um santo modesto”.

Enfim, não há dúvidas que São Jorge é de Ogum e do terreiro do Gantois, de Ilê Iyá Omin Axé Iyá Massê.

Aliás, o Antônio, meu segundo filho, também é de Ogum. Mestre das armas, dos metais e da guerra foi dormir depois de me pedir desculpa por ter chutado minha nuca durante nossa brincadeira de luta. Antes, tentou cortar o meu pescoço com sua espada, mas felizmente a espada é de plástico. Esta foi mais uma sexta-feira que eu escapo da degola.

O João Pedro quando ainda era pequenininho foi reclamado nos búzios por Xangô, meu pai e meu rei. Mas como o pai-de-santo era meio chinfrim, não me convenci. Embora ele tenha a nobreza dos filhos de Oba e os olhos de Iansã. No fundo, só não o entrego  Xangô porque ele nasceu com as circulares do cordão umbilical no pescoço, que é o signo de Oxalufã. Como tenho respeito e apreço pelos mais velhos, acho bom esperar por um gesto do velho Oxalá.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Homem precisa viajar

Para Aurinha

            Li o livro Mar sem fim de Amyr Klink por causa deste trechinho que conheci numa apostila escolar (era uma questão de vestibular) de minha sobrinha Paola:
Hoje entendo bem meu pai. Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.
            Não é preciso dizer que o livro de Amyr tem outras tantas coisas bonitas de ler e de ver (desenhos de baleia, fotos de geleiras, cartas náuticas e uma foto de suas filhas na praia de Jurumirim...). Mas esse pedacinho aí de cima considero especial. Vale um quadro e muito mais.
            Porque essas palavras contêm uma sabedoria antiga, transmitida de pai para filho há séculos. As palavras revelam e, ao mesmo tempo, preservam a essência do que somos nós, os homens.
            Estou me referindo a homens como gênero. À essência do que é masculino, desde a antiguidade. E olha que sou cheio de pruridos para falar em essência, porque acredito piamente que os seres humanos são aquilo que querem ser, nos limites da História, evidentemente. Talvez seja a única exceção que eu faça: um homem se constitui dessa necessidade de viajar, de se conhecer nos limites seus e do mundo.
            Sem forçar a barra é possível encontrar evidências em todas as culturas e em todos os tempos. Do nomadismo à volta de bicicleta no quarteirão, passando pelas grandes navegações. Um homem [é aquele que] precisa viajar.
            Para “criar meninos” é fundamental saber disso. Meu pai, com sua simplicidade, soube me soltar e me deixar partir. Mas sempre cuidou para que eu voltasse, ou melhor, para que eu não morresse na jornada (o ponto não é atrair o filho para a casa, mas cuidar para que fique vivo e possa retornar). As vezes de um jeito sutil — me dizendo “sua cabeça é seu mestre” —, as vezes de forma contundente — pedindo a alguém para zelar por mim.
            É o que tento agora fazer pelos meus filhos.
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O mais engraçado é que sendo um “homem do caminho”, como me revelou em 1992 uma cigana da rua General Jardim lá de São Paulo, agora que sou pai fico angustiado só de pensar em viajar sem os moleques.
Não gosto de dormir fora da casa. Volto sempre, nem que seja muito tarde; chego, pelo menos, a tempo de cobrir os meus filhos e apagar a luz do corredor.

Comentando comentário - bati no meu filho...

Aurinha,

            Por mais que eu queira, certamente não vou conseguir dimensionar o que você está sentindo. Mas, acredite, posso compreendê-la. E mesmo sem saber o que exatamente aconteceu — a gravidade do que ele fez —, sinceramente acho que reagiria do mesmo modo.
            Mas é preciso admitir que foi uma reação emocionada, passional, em resposta à violência que ele, de alguma forma, produziu contra você e contra ele mesmo. Me parece que é importante reconhecer um certo descontrole momentâneo (embora você tenha agido com coerência e racionalidade ao cumprir a “ameaça”, ao impor a sanção do tapa) até para que você consiga dar um segundo passo e caminhar em busca de uma solução para o problema, sem ficar se penalizando pelo ocorrido.
            No entanto, admitindo que os pais nem sempre podem oferecer o melhor auxílio aos seus filhos em situações extremamente delicadas (por isso é provável que o melhor médico-cirurgião do mundo não seja a melhor pessoa para operar seu filho vitimado por um acidente), talvez seja a hora de buscar o auxílio de um terceiro, de uma outra pessoa que não esteja diretamente envolvida no conflito.
            Como você sabe, meus filhos ainda são crianças, mas quando nem sonhava em ser pai de meninos tive a oportunidade de agir como um terceiro (um mediador) em conflitos entre pais e adolescentes. No caso mais difícil pelo qual passei, também porque foi o primeiro, tentei ajudar uma mãe e seu filho adolescente a restabelecerem a comunicação já profundamente degradada: primeiro pelas drogas e depois pelas agressões mútuas. Como não havia um pai entre os dois, acho que pude ajudá-los a dar o próximo passo. Procure ajuda, compartilhe a sua dor, seus medos e, eventualmente, sua frustração por ele não ser o que você gostaria que ele fosse (e vice-versa).
            Infelizmente, não há processo de maturação sem algum sofrimento. É claro que por isso não vamos desejar sofrer, mas é preciso acreditar que o conflito é também uma oportunidade de aprimoramento pessoal e que todo esforço de superação nos faz necessariamente mais humanos, mais capazes de refletir sobre as conseqüências de nossos próprios atos.
            Coragem e tenha fé no seu amor.

domingo, 7 de novembro de 2010

Oração de São Jorge de Ogum

(Wassily Kandinsky - São Jorge I, óleo sobre tela, 1911)


Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar.

Glorioso São Jorge estenda-me o seu escudo e as suas poderosas armas, defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, e que debaixo das patas de seu fiel ginete meus inimigos restem subjugados.

Assim seja com o poder de Deus, de Jesus e da legião do Divino Espírito Santo.

São Jorge Rogai por Nós. Oguniê, saravá!


sábado, 6 de novembro de 2010

A capa mágica invisível

Disse na postagem abaixo que não encontrei o registro que procurava sobre uma birra antiga, mas encontrei este outro fato que me fez refletir sobre a importância das coisas que contamos aos nossos filhos.

O que vou contar a seguir diz respeito àquele período — de março a novembro de 2009 — em que “vivi” longe da Mi e dos meninos: passava a semana trabalhando em Brasília e ficava os sábados e os domingos em Catanduva. Os registros foram feitos nos dias 27 (quinta-feira à noite) e 28 (sexta-feira de manhã) de agosto de 2009:

Hoje de noite, em torno das 22h, o João Pedro me ligou aos prantos.
Assustei bastante.
Então ele me disse — “Papai, vem pra cá agora”.
Finalmente entendi o porquê “A saudade é o revés de um parto”.
[primeiro – 27/08]


Eu não ia registrar o que disse em resposta ao João ontem à noite, mas depois do telefonema que acabei de receber da Mi preciso falar.
Quando já estava me preparando pra dormir, fui pego de surpresa pelo choro e pelo pedido emocionado do João. Com o coração retorcido, tive de dizer a ele que eu não poderia aparecer ali, ao lado dele, naquele momento, pois eu não tinha poderes para realizar esta mágica. Porém, eu conseguiria fazer uma outra mágica bem forte pra ele.
Aí ele parou de soluçar para me ouvir. Disse que se ele colocasse o meu pijama e deitasse no meu lugar na cama (da mamãe), eu faria minha alma voar pela noite e pousar sobre ele para cobri-lo igual a uma capa invisível, enquanto eu não chegasse. Ele ficaria quentinho e bem protegido até que eu pudesse embarcar num ônibus e “picar a mula” para Catanduva
De madrugada (a Emiliane não o horário), João Pedro acordou a mãe para lhe contar que “a mágica do papai deu mesmo certo, [pois] olha mamãe eu estava descoberto, mas meus pés continuaram quentinhos”.
[segundo – 28/08]

Chorei que nem gente grande. Muito mais por saber que no domingo à noite me separaria de minha família novamente.

Então, para tentar suavizar a dor de mais uma despedida, resolvi dar seqüência à estória da capa mágica invisível. Costurei algumas referências pessoais com estórias que o João já conhecia e acho que consegui fazer uma bela capa para presenteá-lo.

Primeiro fui me inspirar na estória da capa da invisibilidade (invisibility cloak) de Harry Potter. Quem leu o livro a Pedra Filosofal vai se lembrar que Harry recebe a capa como um legado de seu pai James. Ela é oferecida ao Harry como uma forma de proteção na ausência dos pais (que estão mortos há anos), embora ele a utilize para correr mais riscos. A capa do Harry, no entanto, não pode protegê-lo de todos os feitiços e de qualquer outra forma de agressão física (no último livro da série a gente fica sabendo que a capa é uma das Relíquias da Morte).
A capa que eu fiz para o João Pedro (e também para presentear o Antônio, quando fizer 4 anos) é bem mais poderosa que a do Harry, porque para criá-la tive uma ajuda divina. Na verdade, duas ajudas: de Nossa Senhora do Calvário e de São Jorge de Ogum. É que ainda criança, menininho, minha mãe me garantiu que a Virgem Santa do Calvário — protetora do Colégio em que estudei a vida inteira — me colocaria debaixo de seu manto protetor e impenetrável sempre que eu estivesse ou me sentisse em perigo. E não é que funcionava? Pois quando sentia medo no escuro do quarto era só cobrir a cabeça com o cobertor imaginando que um pedaço do manto me guardava. Usei esse “meu pedaço” para fazer a capa do João.

Por fim, bordei com uma linha cor de prata aquela conhecida oração de São Jorge de Ogum (tão divinamente interpretada pelos Racionais Mc’s) no centro da capa e, assim, transformei o manto numa armadura extremamente leve, maleável e indestrutível.

Antes de ir embora para Brasília, como registrado acima, coloquei cerimoniosamente a capa sob os ombros do João e amarrei, como se praticasse um ritual. Ele me perguntou se podia nadar com a capa. Eu respondi que ele não precisa tirá-la para nada, inclusive nadar. Aí ele me perguntou se podia mostrá-la para o seu melhor amiguinho na época e eu lhe respondi que, como a capa era invisível, o seu amiguinho não poderia vê-la, mas apenas acreditar nela.

Pude voltar para Brasília um pouco menos carregado. E assim, um pouco mais leve, fiquei até o almoço do dia 31 de agosto. Como de costume, naquela segunda-feira fui comer com um grande amigo que me ajudava a fazer a transição dolorosa entre as cidades. Contei com empolgação a hestória da capa mágica invisível e falei com entusiasmo da fé do João Pedro.

Mas ao invés de se congratular comigo pela criação (como esperava), meu amigo franziu o cenho para me repreender:
“E se o amigo resolve atirar uma pedra nas costas dele só para testar a capa?”
“E se o João resolver parar um caminhão com o poder da capa?”
“E se ele tentar voar com a capa?”
“E se...”

“Pode parar”, interrompi e reagi de imediato: disse um palavrão e pedi que ele batesse na boca. Mas, no fundo, fiquei preocupado. Mudamos de assunto porque ele sacou meu drama.

Voltei para o trabalho ensimesmado, considerando os riscos que o João poderia correr só por causa das minhas invenções. Passei o dia meio desligado pensando numa maneira de consertar o que havia feito.

De noitinha, antes de telefonar para a Mi, conversei com um outro grande amigo sobre minhas preocupações, já me sentindo culpado pelo que eu imaginava que pudesse acontecer (cabeça de pai...). E não é que o Damião conseguiu me tranqüilizar? Daquele seu jeitão incrédulo desenvolveu um raciocínio tão cheio de referências significativas para mim (e para ele), citando Kolberg e dando exemplos pessoais, que acabou me convencendo que o João Pedro possuía maturidade suficiente para não se meter em enrascada por causa da capa. Não sem antes, contudo, me perguntar se eu conhecia um filme chamado Crash. “Não”, respondi. Ele ficou visivelmente intrigado porque, nesse filme tinha uma estória exatamente igual a que eu contei, inclusive (ele se lembrava) com o ritual solene da entrega da capa. Daí ele me contou o surpreendente fim da estória e eu fiquei novamente em dúvida sobre o que fazer com a capa.

Resolvi ligar para a Mi e tudo se resolveu; aliás, como sempre. Foi o João Pedro que atendeu o telefone para me perguntar se ele poderia guardar a capa. “Por que?”, perguntei. Ele respondeu: “— Porque eu não quero que estrague”. Parece incrível, mas era a deixa que eu precisava para tentar melhorar as coisas.

Falei, enfim, que ele podia guardá-la quando quisesse [a mamãe sabia desamarrar], mas que a capa não estragaria com o uso. A capa mágica invisível só estragaria, disse, se você usá-la sem necessidade, sem que você esteja realmente em perigo. Pensei em dar exemplos, mas no mesmo instante descartei para não dar idéia errada. Concluí reforçando que a capa o protegeria de todos os males, desde que ele continuasse sendo um moleque bom e obediente.

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Sosseguei tanto que fui me lembrar de assistir o filme Crash quase um ano depois (peguei em junho deste ano na locadora da “Tia Tati”, que já foi Megamil e agora é 100%). Fiquei ao mesmo tempo estarrecido e feliz com coincidência das estórias e a semelhança das capas.

Selecionei abaixo os dois trechinhos do filme em que a capa é a protagonista principal para quem quiser conferir. Como não tem legenda, segue uma sinopse das cenas:
Em sua casa Daniel conversa com sua filha, Lara, que está escondida debaixo da cama por ter ouvido o barulho de um tiro (do bairro violento). Para confortar Lara, Daniel lhe dá uma “capa invisível e impenetrável”.
Um cliente insatisfeito (é mais do que isso) aborda Daniel quando ele está chegando em casa do trabalho. Lara vê o pai sendo ameaçado com uma arma apontada para o seu peito e corre para protegê-lo com a capa. Assim que ela se joga no colo de seu pai a arma é disparada e Daniel sofre por acreditar que ela foi atingida. Mas Lara está ilesa como se o tiro não tivesse penetrado (noutra cena do filme descobrimos que eram balas de festim). Daniel, chorando, sai carregando sua filha nos braços ao encontro de sua esposa.

http://www.youtube.com/watch?v=KDW1tnr4Auk

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Uma saída honrosa (e eficaz) para birras

Tentei encontrar no “Caderno dos Meninos”, onde desde a primeira gravidez lanço apontamentos imediatos sobre o que vivencio com meus filhos, um registro de uma birra que o João Pedro deu num supermercado de Brasília nos idos de 2006 quando ele tinha em torno de três anos, um pouco mais do que o Enzo, filho da Melina.

É que eu queria oferecer os detalhes de como tudo se passou. Ou melhor, de como conseguimos — eu e o João — evitar um desfecho trágico. Mas infelizmente não encontrei (deve ter escrito numa folha em separado).

De qualquer forma o contexto é muito parecido com o da Melina, a única diferença da padaria para o supermercado é a quantidade de prateleiras porque o apelo ao consumo (no conjunto) é o mesmo.
Lembro-me que a Mi já estava grávida do Antônio e eu estava sempre ocupado demais com as coisas do trabalho. Naquele dia cheguei em casa ainda mais tarde, encontrei o João Pedro a mil por hora e a Mi exausta. Ele disse que queria comer bombom e eu achei que era um ótimo pretexto para aliviar a cansaço da mãe e a culpa do pai. Peguei o carro e lá fomos nós.

Até que nos divertimos bastante com o carrinho e com os peixes mortos. Tomei uma cerveja, ele um achocolatado, pegamos os bombons (os dele e os da mãe) e nos dirigimos para o caixa.

Entramos nessas filas de caixa rápido formadas por corredores de biscoitos, balinhas e supérfluos em geral (que costumamos chamar de “porcarias”, embora gostemos de comer). A intenção é uma só: coagir o cidadão a comprar o que não é necessário, o que está fora da lista, porque se fosse importante ele teria comprado antes. E o filho do cidadão, que não tem idade para entender a maldade, quase enlouquece. O pai, é claro.

Deve ter durado uns cinco minutos nossa espera, tempo suficiente para eu falar “não” umas 30 vezes (um “não” a cada 10 segundos são 6 por minutos multiplicados pelos 5 que passamos na fila). Mas dei sorte, porque nesse dia a maioria dos enfileirados era de pais que pareciam compreender a minha situação e que me ofereciam apoio a cada negativa.

No entanto, depois de passar as mercadorias pelo caixa e entregar o cartão para pagamento me dei conta que o João Pedro, sentado dentro do carrinho, tentava abrir uma caixinha dessas balas ardidas (tipo Tic-Tac). Zup! Arranquei a caixinha das mãos dele e disse “não”.

Pela reação descontrolada do João tenho certeza que alguém na fila deve ter pensado que eu havia arrancado um braço dele ou furado os olhos do menino. Acho que só não saí correndo e deixei meu moleque gritando e esperneando porque a moça estava com meu cartão de crédito.

Pedi para ele parar. Mas que nada, nem me ouviu.

Agi rápido, sem pedir outra vez e fazer ameaças: segurei firme o João pelos braços e o tirei do carrinho de supetão. Ele se assustou, sentiu o tranco e diminuiu o tom e o volume da birra. Segurei-o firme num desses abraços de judoca. E com ele dominado (embora continuasse chorando e berrando) pude digitar a senha e concluir a compra.

Num clarão repentino, num laivo, percebi que só tinha duas alternativas: sair correndo e deixar o João aos cuidados do gerente do Supermercado (pois já estava com o cartão) ou oferecer a ele uma saída honrosa para a birra (sem humilhações para nenhum de nós)

Pensei, enfim, que as alternativas não eram excludentes, desde que eu tentasse a saída honrosa primeiro. Foi o que fiz e até hoje é o que faço, porque dá muito certo.

A saída honrosa é nada mais nada menos do que uma mudança abrupta do foco da birra. Isto é, ao invés do pai ficar dizendo “João Pedro, não adianta gritar que eu não vou levar” ou “Olha só o que você está fazendo” ou “Agora que eu não levo nem os bombons” ou “Vou estrangulá-lo quando a gente chegar em casa”, entre outras coisas que as mães costumam falar, ao invés de ficar valorizando o descontrole da criança é muito mais simples surpreendê-la com uma sugestão ou um comentário inusitado do tipo: “João vamos pegar essas caixas de papelão do supermercado para fazer uma fogueira lá em casa?”

No mesmo instante ele parou de chorar e prestou atenção em mim. Aí pedi a ele que pegasse também mais umas sacolinhas de plásticos que pegam fogo fácil. E emendei uma hestória em que meu primo Fernando tinha pisado descalço num plástico derretido e teve que ir para hospital... Pronto, tudo sob controle novamente e pudemos voltar felizes da vida pra casa.

No caminho nem toquei no assunto da birra. Só quando fui tirá-lo da cadeirinha do carro, depois de estacionar em casa, é que falei olhando nos olhos dele: “Filho, acho que você se esqueceu que na nossa casa quem faz birra nunca consegue o quer. Mas agora você já se lembrou, né?”

Ele me fez um jóia com o dedo errado e fomos comer os bombons junto com a Mi.

quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O pai da Rapunzel

Sei que ninguém quer saber mais sobre aquela história de aborto, etecétera e tal. Pois, se nem a Angélica, que é a ombudsman do blog, quis comentar e polemizar, o melhor que eu poderia fazer é dar por encerrado o assunto.

Concordo: ponto final e não se fala mais nisso. Mas acho importante voltar à questão que, para mim e também para Mi, a nossa história ilustra: o egoísmo que o pai expressa em querer discutir racionalmente o aborto do próprio filho é, na verdade, uma reação inconsciente ao sentimento de exclusão que ele vivencia com a gravidez?

Não à toa usei a palavra “inconsciente” diretamente relacionada à psicanálise. Porque para tratar do tema “exclusão paterna” recorro a um dos capítulos do livro Fadas no Divã: psicanálise nas Histórias Infantis, escrito por Diana e Mário Corso (Melina, se você já não tem, compre!). O título do Capítulo IV é “A mãe possessiva” e nele são analisados dois contos de fadas, em especial: Rapunzel e A fada da represa do moinho. Nem de longe estou, de antemão, sugerindo que a culpa pelo egoísmo do pai é da mãe possessiva. Devagar com o andor.

Provavelmente se tivesse falado desse livro — primoroso, diga-se de passagem, tanto pela qualidade do texto quanto pelo requinte da edição — numa postagem anterior àquela do aborto desconfio que o assunto não pareceria tão desagradável até para os mais sensíveis . Só não o fiz porque naquela ocasião ainda não tinha lido o referido capítulo.

Claro, todo mundo se lembra que a estória de Rapunzel tem início quando ela ainda não tinha tranças e muito menos esse nome. Começa assim: sua mãe grávida obriga seu pai a furtar os raponços da vizinha bruxa para saciar seu desejo.

E lá foi o pai, na calada da noite, tentar assaltar a horta da vizinha. Então é flagrado com os raponços na mão (vale dizer que raponço não é sinônimo de rabanete, embora a maioria das traduções disponíveis cometa esse erro). A bruxa malvada deixa que o pai leve os raponços desde que, em troca, entregue a criança logo depois do nascimento.

Dito e feito. A bruxa recolhe a menina e dá a ela o nome de Rapunzel, em homenagem aos raponços que lhe garantiram uma filha (se fossem rabanetes chamaria “Rabunzel”).

O resto da estória todo mundo se recorda. Ou não? De qualquer forma, não tem nenhuma relevância para a questão levantada; que de um jeito mais direto poderia ser assim reescrita: por que diabos o pai de Rapunzel promete e cumpre a promessa de entregá-la?

Como fiz questão de apontar no terceiro parágrafo, o pai não troca sua filha por um maço de raponço apenas porque aceita se submeter primeiro ao desejo de sua mulher e depois ao desejo da bruxa (outra mulher).

A explicação excelente e estimulante de Mario e Diana Corso é a seguinte:

            Quando um casal é invadido por um terceiro elemento, o recém-nascido, não é incomum que o pai vivencie uma espécie de mágoa, que muitas vezes começa no próprio curso da gestação. A aparência de plenitude da grávida, algumas vezes associada à recusa de uma vida sexual mais animada, deixa o homem com uma sensação de exclusão. O nascimento não melhora as coisas: o recém-nascido povoa a casa com seus objetos, seus gritos e seu cheiro, incluindo, por vezes, a presença de estranhos na casa. A nova mãe passa o dia seminua, mas dessa vez não há nenhum apelo erótico, apenas uma fonte de leite. Além disso, exausta, a mãe adormecerá com o nenê sempre que tiver oportunidade.
            Para o homem, há alguns caminhos possíveis: observará todo esse circo a uma distância prudente, orgulhoso da paternidade, mas estranho a seus rituais, ou é possível que se identifique com a mulher, compartilhando com ela os cuidados maternos primários. De qualquer uma dessas posições, precisará (ou sentirá necessidade de) intervir, reconstruindo a vida erótica do casal, lembrando à mulher que ainda é desejável, tirando-a dos circuitos obsessivos em que ela entra com seu bebê. Por mais envolvido que esteja com mamadeiras e fraldas, o pai tende a oferecer alguma exterioridade que areja a relação com o bebê. As mães principiantes entram em pensamentos recorrentes e culposos, em que se acusam das mais variadas insuficiências, alarmam-se com qualquer coisa e temem a cada segundo pela vida do bebê. Nada como um pai para relativizar essas pequenas, mas sofridas loucuras. Porém, nem sempre o homem está pronto para exercer tal função. Ele pode também entrar numa disputa com o bebê, colocando-se na mesma posição: chorão e exigente, ou ainda terá o recurso de desistir, deixando sua mulher entregue ao papel da bruxa, vivendo exclusivamente para o bebê. Muitas vezes, esta é a ocasião para providenciar uma relação extraconjugal, fazendo uma conveniente separação entre a mãe e a mulher desejada, que ele não suporta vê-las fundida numa mesma pessoa.


Bem na mosca, né?

A seqüela do guerreiro

Dói na gente, só de lembrar o quanto o João Pedro batalhou para viver.
Mas, ao mesmo tempo, me encho de orgulho por ele ter vencido.
Por isso, acho que não vou nem mais dizer que a bolinha em seu ombro esquerdo é uma seqüela de guerra.
Daqui em diante vou lhe falar que é, sim, sua primeira medalha de guerreiro.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O parto do João Pedro

E depois de 9 meses e dum parto de 12 horas, o João Pedro finalmente nasceu.
Foi tão dura sua luta pela vida que desmaiou de exaustão. O médico teve de puxá-lo, numa espécie de fórceps manual que quebrou sua clavícula (só soubemos disso meses depois quando identificamos o calo ósseo no ombro).

Ele não chorou. E nós vivemos segundos, minutos de completo desespero.

Tem uma foto que minha cunhada, Ane, tirou no momento em que o médico obstetra segura o João desmaiado: a Mi está cócoras — assim aconteceu a parte expulsiva do parto natural — eu estou atrás dela fazendo a sustentação, ela toca o corpinho inerte do João e com a voz trêmula e o rosto crispado pelo medo pergunta ao médico “por que ele não chora?”.

Das costas da Emiliane, já com as pernas trêmulas pela fadiga, quase desabei ao sentir a agonia e o terror em sua voz.

A foto registra esse momento exato. E ainda hoje, quando tento ver a foto, meu coração se aperta com a lembrança da lembrança do pior.

No primeiro minuto de vida o João Pedro ganhou nota 3 na velha escala de Apgar, que significa asfixia moderada. Mas logo reagiu, porque ele realmente nasceu guerreiro, e com o auxílio do médico-pediatra(?), que passava pela sala de parto, respirou firme e forte.

Foi então acomodado ao lado da Mi, porque calor de mãe é mais pura energia que existe.

Aí eu me aproximei, chamei seu nome e ele me olhou nos olhos como ninguém nunca havia me olhado. Esta é a foto, e a lembrança mais feliz que trago do dia 18 de dezembro de 2003:


Dizem que esse olhar que o recém nascido lança sobre o pai é uma aquisição evolutiva dos seres humanos. Ou melhor, ao longo dos séculos os bebês foram aprendendo a encarar seus pais e a tocá-los profundamente com os olhos da inocência porque durante anos os machos devoravam ou simplesmente descartavam suas crias.

Talvez o João Pedro ainda estivesse preocupado com aquela conversa esquisita sobre aborto.

Conto isso tudo porque quando as pessoas ficam impressionadas por saber que o Antônio, nosso segundo filho, nasceu em casa pelas minhas mãos e pela coragem da Emiliane, nem imaginam que o parto do João Pedro foi o extremo oposto e, portanto, tão significativo quanto.

Embora as “conversas” que mantivemos na gravidez tenham sido fundamentais para que eu me reconhecesse como pai, foi o nascimento do João que uniu definitivamente minha vida à dele. Além do mais, depois da foto tive de acompanhá-lo à UTI neonatal porque o pediatra me disse que “se o bebê não ficasse vermelhinho nas próximas horas, ele teria sérios problemas neurológicos” (dá pra entender porque tenho minhas dúvidas se esse rinoceronte-de-branco era mesmo pediatra?). Como não tinha nenhum outro bebê no berçário pude ficar ao seu lado até que ele ficasse corado: foram quatro horas de uma longa conversa sobre o amor e sobre a vida. E antes do dia acabar ele já estava no quarto com sua mãe e seu pai. São e salvo.

Para nossa alegria o João Pedro nunca teve cólicas, nunca apresentou problemas neurológicos decorrentes da asfixia e sempre — que ficava inquieto — sossegava ao ouvir minha voz.

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Do aborto


Na postagem anterior contei que o João Pedro me ensinou como as crianças nascem das estrelas. Disse também que quase “morro eletrocutado com [o choque da] notícia da gravidez”. Levei um baque tão forte que considerei — e pior — discuti seriamente com a Mi a opção pelo aborto. Ia contar essa nossa história real, sem metáforas, mais dia menos dia numa Intra-uterinas. E provavelmente para muitos que me acompanham por aqui o tema passaria despercebido, ficando escondido entre tantas “memórias de fora pra dentro da barriga”.
Resolvi sublinhar o aborto. Ou melhor, sublinhar a importância que a consideração dessa hipótese — interromper a gestação de nosso primeiro filho — teve na afirmação de minha condição de pai, porque estou indignado com a hipocrisia e a covardia demonstrada pelos candidatos (e suas campanhas) a presidente do Brasil. Como o debate político pode dissimuladamente se recusar a enfrentar a questão do aborto? De que serve a Política senão para nos proporcionar a discussão sobre projetos de vida em comum e sobre o que é relevante para todos e cada um de nós? Sinceramente, não sei. Mas talvez essa Política — assim com “P” maiúsculo — dependa mesmo dessa esfera pública livre de constrangimentos que se forma nos blogs, nas ruas, nas casas, enfim, com nossa própria opinião pública.

Olha eu aqui fazendo discurso... Deve ser saudades de Brasília... É melhor ir logo para o texto.


Ainda bem que você esperou sentado no conforto do útero de sua mãe por esta nossa conversa.
            Apesar de que nem mesmo a certeza de seu bem estar pode minimizar meu constrangimento em tê-lo feito esperar tanto.
            Mas, de alguma forma, este atraso pode nos ser de grande valia, já que o motivo da demora é nada mais nada menos do que o tema da conversa prometida.
            Assim, se tivesse escrito no dia 11 de junho [de 2003] como prometido, teria de tratar com hipóteses e conjecturas que — como você já sabe — intensificam o grau de abstração de nossos papos e dificultam nossa comunicação.
            Portanto, dos males o menor.
            A razão do atraso é a grande quantidade de atividades (profissionais e intelectuais, não sei se convém dividi-las desta forma) que seu pai está desenvolvendo há quase três meses. Na verdade, a grande quantidade de trabalho tem exigido a quase totalidade de meu tempo. Sem qualquer exagero (digo isso para que você fique avisado que em nossa sociedade as pessoas valorizam tanto o trabalho que gostam de dizer que trabalham muito, gostam de parecer ocupadas e sem tempo).
            Meu tempo está quase completamente tomado por quatro atividades:
a)      a de professor de Direito numa faculdade aqui de Brasília;
b)      a de Coordenador Acadêmico de Pesquisa na mesma faculdade;
c)      a de assessor jurídico do Departamento de Política do Ensino Superior do MEC;
d)      por fim, a de pesquisador (ou mestrando) na faculdade de Direito da Universidade de Brasília: e para você poder mensurar a importância deste Mestrado para mim e também para sua mãe saiba que ele ensejou nossa mudança de Belo Horizonte/Minas Gerais para Brasília/Distrito Federal em março de 2001. Largamos empregos e amigos em BH, onde me graduei e vivi por oito anos, para realizar este “sonho” do Mestrado. Depois que você decidiu viver entre nós, a pesquisa que realizo é nossa prioridade número 2.

            Bom, agora que você conhece grande parte do que faço e com que trabalho (deixei de fora os cursos ou palestras que dou esporadicamente em cursos de graduação e pós-graduação latu senso dentre outros “bicos” que nos rendem um dinheirinho extra, porém significativo), talvez possa entender o motivo pelo qual atrasei e também pelo qual, via de regra, demorarei a contar tudo o que penso que você deve saber antes mesmo de nascer.

            Talvez, agora, você possa entender a razão pela qual discuti com sua mãe quando recebi a notícia de sua chegada...
            Antes de qualquer outra palavra saiba que das duas conversas que reputo mais difíceis para ter contigo, a que faremos agora — porque já não pode mais ser adiada — é a mais dolorida.
            Desde o ano passado, mais precisamente dezembro de 2002, vínhamos eu e sua mãe conversando seriamente sobre filhos. Sua mãe dizia que nosso casamento e nosso amor estava suficientemente maduro e consolidado para acolher uma criança. Eu não discordava da solidez de nosso amor, mas advogava a necessidade de concluir o Mestrado e ter casa própria para então encomendar nenê.
            Ela acabou concordando comigo e assim reajustamos nossos planos, refizemos nossas contas e partimos a procura de um apartamento em Brasília que pudéssemos comprar. Vivemos quase dois meses dos classificados para imobiliária, da imobiliária para o corretor, do corretor para o imóvel e de novo para os classificados. Ao fim de fevereiro deste ano, depois de visitar muito apartamento do tamanho de nossa capacidade de compra, decidimos adiar um pouco mais a execução deste plano, cientes de que com isso adiávamos a sua concepção. É claro que o adiamento não se fez sem o descontentamento de sua mãe.
            De qualquer forma, combinamos que casa e filhos só em 2004 quando então teria concluído o Mestrado e decidido aonde faria o Doutorado. Isto é, se o Doutorado tivesse de ser realizado fora de Brasília, Belo Horizonte quem sabe, seria mais conveniente comprar casa na cidade em que fixaríamos residência pelos quatro anos do curso.
            Assim, continuamos tocando nossas vidas na mesma toada, bem conforme o planejado. Até que em março tanto eu quanto sua mãe recebemos propostas de emprego irrecusáveis: ela foi convidada para trabalhar como assistente de uma professora-coordenadora de pós-graduação em Odontopediatria, curso no qual sua mãe se especializou, e eu fui convocado pelo meu orientador a assessorá-lo no MEC.
            Feitas as contas, aceitamos ambos os convites com a consciência de que as novas atividades provocariam uma redução drástica no tempo que tínhamos um para o outro, mas, em compensação, aumentaria em muito nossa renda mensal permitindo juntar o dinheiro necessário para compra da casa.
            Eis então que numa segunda-feira pela manhã, no fim de março, uma ou duas semanas após darmos início aos novos trabalhos, sua mãe — bastante preocupada com o atraso da menstruação — decide ir à farmácia para comprar um destes testes de gravidez pela urina. Como se fosse hoje, me lembro que ela foi ao banheiro, fez o teste e voltou para cama me pedindo que fosse ver o resultado.
            Lembro-me da cena, mas não me recordo exatamente o que senti. Sei que mantive o controle porque, de alguma forma, apostava minhas fichas na eficácia duvidosa do teste.
            No mesmo dia decidimos fazer o exame de sangue; este sim, na minha cabeça, poderia ser considerado um teste de verdade.
            Ficaria pronto às três da tarde, hora em que sua mãe estaria trabalhando no Gama, o que me obrigava a ir buscar o resultado.
            Do momento em que estacionei o carro, todos os atos que relacionarei a seguir parecem ter se passado em câmera lenta, muitíssimo lenta: bati a porta, chequei o endereço e o nome da clínica que trazia anotados num papel guardado no bolso de minha camisa, caminhei alguns passos até a entrada do edifício, cruzei com algumas pessoas, desci não mais que dez degraus de uma escada, entrei pela porta de vidro da clínica, sentei-me diante da atendente, perguntei pelo exame de Emiliane A. Romão, entreguei o canhoto, a atendente se levantou caminhando a uma sala anexa, olhei para a recepção vazia, fixei meu olhar no monitor de tv ligado mas a esta altura já não via nada.
            Só fui abrir o exame quando estava dentro do carro.
            Um tanto quanto extasiado, liguei o carro e toquei automaticamente paro o Gama ao encontro de sua mãe.
            Conforme avançava pela estrada fui sendo tomado por uma alegria imensa a ponto de entrar no consultório de sua mãe e surpreendê-la com um abraço afetuoso e feliz. Nós nos beijamos, conversamos um pouco, choramos e ficamos alguns minutos em silêncio (algumas situações na vida são tão abundantes de significados que faltam palavras).
            Com a certeza de que deixava sua mãe tranqüila, peguei o caminho de volta.
            Foi na volta para o trabalho que as dúvidas foram me assaltando e uma frustração profunda tomou conta de mim.
            À noite esperando encontrar-me em casa com sorriso nos lábios e flores na mesa, sua mãe deparou-se com um homem confuso, triste e fragilizado.

            Hoje, passados mais de três meses deste episódio, sou capaz de entender e talvez explicar a razão de minha confusão, de minha tristeza e de minha sensação de vulnerabilidade.
            Não tinha nada a ver com você ou com a notícia de que você se encontrava a caminho. A idéia pura e simples ainda agora me assusta, mas de modo algum me entristece. Por isso tenho certeza que a frustração deveu-se à minha péssima percepção do contexto em que você nasceria.
            Enquanto dirigia de volta para o trabalho ia me deixando levar por uma visão ruim do mundo: só conseguia pensar na violência avassaladora das cidades brasileiras, na degradação acelerada dos recursos naturais, e, sobretudo, pensava com tristeza no pouco tempo que teria para me envolver contigo durante sua gestação.
            Lembre-se que afirmei acima ter desejado por muitos anos ser seu pai. Mas aí quando me vi a oito meses de seu nascimento e sem tempo para dedicar-me, como imaginei, à preparação de sua vida, fiquei muito frustrado.
            Foi isso o que eu disse à sua mãe; disse outros tantas palavras duras, rudes e ofensivas a ela ¾ como deslealdade, irresponsabilidade, separação e até interrupção (de fato a palavra dita foi “aborto”; hoje é quase impossível escrevê-la) —, mas o que a fez chorar mais profundamente, tenho certeza, foi minha frustração.
            À noite do dia em tivemos a confirmação da gravidez sua mãe e eu conversamos longamente sobre todas as implicações de sua chegada. Em algumas horas partilhamos inúmeras sensações de amor e medo, de alegria e ansiedade, de excitação e tristeza... Quando digo “sentimos”, também penso em você.
            Talvez você não tenha conseguido discernir, naquele dia, se falávamos a língua do amor ou não. Também nós não sabíamos, tudo girava muito depressa para que pudéssemos saber alguma coisa como gostaríamos de saber. Muito provavelmente cada um de nós três tenha se sentido desamparado naquele dia.
            Na minha cabeça havia se armado uma “sinuca de bico”, isto é, uma situação de difícil solução que me conduzia irremediavelmente à frustração: sabia que deveria continuar trabalhando muito para poder prover as condições matérias necessárias ao seu nascimento, mas se eu continuasse trabalhando muito sabia que não teria tempo para ser seu pai.
            Desde o primeiro momento, embora eu não pudesse percebê-lo como uma grande alegria porque sentia a imensa responsabilidade que sua chegada acarretava (devo lhe dizer que talvez seja esta uma característica marcante em seu pai: enquanto outras pessoas costumam comemorar situações que impõem mudanças para melhor, eu inevitavelmente me preocupo e dimensiono as responsabilidades e as obrigações decorrentes), desde o instante em que nos certificamos de sua gestação a palavra “prioridade” deixou de fazer plural. Ou seja, prioritariamente só existe você.
            Por isso vivi, até poucas semanas atrás, este pequeno drama, aquela sinuca.
            Não sei exatamente quando consegui superá-lo, porque comecei espontânea e intuitivamente a fazê-lo. Mas hoje creio ser capaz de explicar precisamente o quê deflagrou este esforço de superação de meu drama pessoal e como o fiz. Noutras palavras: vou lhe contar como o exercício da paternidade (ou melhor, o que eu entendo por paternidade) tem me feito e me preparado para ser seu pai — acho que vale a pena falar um pouco sobre tudo isso não apenas para relatar uma importante conquista, mas também para registrar os percalços e os desvios do caminho que decidi percorrer ao seu encontro (vivemos numa sociedade machista, isto você já sabe; a novidade é que as restrições e os constrangimentos de uma sociedade com esta “marca” atingem também os homens: como gestar e parir são considerados obrigações femininas, não há informações e orientações dirigidas à participação dos pais; e quando existem, somos tratados como coadjuvantes ou como acessórios da relação mãe-filho); e, para minha felicidade, caminho de mãos dadas com sua mãe.
            Voltando ao o quê e ao como, após muito estranhamento (a que chamei de frustração), percebi que eu precisava concebê-lo, interiorizá-lo, para então me sentir a vontade para preparar sua chegada. Assim entendi que necessitava conceber sua vida para planejar sua vinda.
            Pode parecer confuso falar de sua concepção com a gravidez em curso, pois, a rigor, você foi concebido a partir do instante em que o espermatozóide de seu pai encontrou-se com o óvulo de sua mãe no interior do corpo dela.
            Todavia, a partir deste instante bioquímico, deste encontro de gametas, apenas sua mãe pode experimentar naturalmente a concepção de sua vida, porque tudo nela começa a se modificar para acolhê-lo e desenvolvê-lo ao longo de nove meses. Esta é ordem natural das coisas: primeiro os bebês são concebidos e depois tudo começa a se arranjar para sua chegada.
            Mas para que esta “ordem” possa ser natural também para o pai, os casais costumam iniciar a concepção de seu bebê muito antes do encontro genético: começam pelo planejamento intelectual, isto é, concepção mental de seus filhos. Por isso, pode-se afirmar que mais do que a formação do zigoto, a concepção exige um encontro de idéias, entre pai e mãe.
            Sua mãe e eu vimos há anos pensando e concebendo seu nascimento. E isto acontece mais ou menos assim: aprofundamos nosso amor vivenciando juntos cada felicidade e cada infelicidade, falamos muito da educação que recebemos de nossos pais, avaliamos, criticamos e tentamos corrigir nossas atitudes ruins, trabalhamos para acumular recursos que não serão gastos por nós, enfim, passamos a pensar e planejar a vida para três pessoas. Creio que, com algumas variações, os casais que se amam assim concebem seus filhos.
            Como todo planejamento, a chegada dos filhos exige a definição de um cronograma. Ou seja, decisões sobre o que deve acontecer a cada mês ou a cada dia na vida do casal para que uma terceira pessoa possa nela ser acolhida. Há casos em que o tempo necessário para ir da concepção à execução leva três, quatro anos. No nosso cronograma levaria dois: tendo começado em 2002 quando nos sentimos seguros no casamento, maduros no amor e estáveis na profissão concluir-se-ia em dezembro de 2004. Talvez eu esteja sendo muito metódico — nada estranho a um professor de metodologia — e lhe ofereça uma impressão irreal dos acontecimentos; é claro, que na prática tudo se passa de forma pouco ou nada organizada.
            O fato é que você suprimiu um ano de nosso cronograma ao decidir nascer em dezembro deste ano. Bom, hoje desconfio que no calendário de sua mãe você já deveria ter chegado; mas isso fica para ela lhe contar...
            Aí, vi-me atropelado pelo seu tempo e obrigado a ajustar-me à sua ordem natural das coisas (abro aqui um parênteses para lhe confessar que esta petulância, esta sua prepotência de chegar antes que nós conscientemente lhe convidássemos a vir, muito me agradou; apesar de tudo, pensava eu nas primeiras semanas de gravidez, trata-se de uma criança com personalidade e com enorme capacidade de decisão).
            Mas, como eu dizia acima, entendi que a sua subversão da “minha ordem natural” exigiria de minha parte um esforço célere e, nem por isso menos dotado de paixão, de conclusão de meu próprio processo mental de concepção. Dizem que esta necessidade de racionalização é tipicamente masculina; não concordo. Acho que, ostentando essa afirmação, muita mulher que se diz emancipada acaba por se aprisionar nos limites morfológicos e culturais de seu próprio gênero. Admito que diante da gravidez é o homem quem mais necessita fazer uso da razão para se aproximar da experiência naturalmente sensível na qual a mulher se encontra plenamente envolvida.
            E, então, percebida a necessidade de concepção, restava responder a seguinte pergunta: como fazê-lo?
            Mais uma vez procurei quem me oferecesse pistas e experiências. “Um livro pelo amor de Deus!”. Nada encontrei.
Daí que pensei: vou começar a escrever para o bebê. Ou melhor, vou começar a conversar com você, assim, por escrito. Imediatamente fui tomado pela força da comunicação sincera entre pessoas que se amam e se desejam.
            Minha nossa, como não havia percebido antes que apenas minha crença no livre exercício da comunicação partilhada poderia nos aproximar, poderia realizar nossa concepção.
            Sim, nossa concepção! Pois não seria possível concebê-lo como filho sem, ao mesmo tempo, conceber-me como pai. Escrevendo pude entender tudo mais: precisava dialogar contigo sem a mediação de sua mãe e, portanto, sem a obrigação do contato com a barriga dela, precisava torna-me capaz de ser seu pai sem renunciar à minha autonomia como sujeito, como homem.
            Desta forma, sigo há mais de um mês exercendo a paternidade e, definitivamente, me preparando — lado a lado com sua mãe — para você.
            Hoje, com muita felicidade, posso lhe dizer que dou por concluída nossa concepção: sou seu pai e você é meu filho. Também posso afirmar que este exercício discursivo de autonomia paterna — embora, num primeiro momento, tenha me obrigado a recusar a mediação de sua mãe —, hoje, me faz livre para amá-la ainda mais.