quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Ainda sobre publicidade, consumo e criança

Disse na penúltima postagem, comentando um comentário, que o ponto (ou o cerne) de minha oposição à publicidade que aterroriza crianças a pretexto de produzir consciência ecológica é, na verdade, a “‘educação’ pelo choque e pelo medo”. É contra isso que me levanto. Contra essa perspectiva anti-pedagógica lançada sobre as crianças, quase sempre, sem o consentimento e a intermediação dos pais.

No fundo, sou contrário a que qualquer adulto estranho ao nosso ambiente familiar (que inclui, além dos parentes, também professores e pessoas amigas) mantenha com meus filhos relações diretas, isto é, sem a minha participação e/ou da mãe. Não aceito, por exemplo, que alguém ofereça balas para o meu filho sem minha autorização, ainda que esteja vestido de papai Noel. Muito menos admito que qualquer médico atenda meu filho sozinho em seu consultório. E tampouco conceberia a hipótese do meu filho servir a Deus como coroinha e passar horas apenas com o pároco na sacristia.

Nessa mesma linha de “relações diretas” é que coloco a publicidade, qualquer publicidade. Tanto faz aquela com pretensões educativas quanto aquela outra destinada a incutir na criança um desejo incontrolável de consumir brinquedos, doces, maquiagem, carros de luxo (sim!), status, etc.

Pois, se não permito que estranhos ofereçam pessoalmente qualquer coisa aos meus filhos sem minha aprovação, como poderia aceitar que o fizessem pela televisão? Certamente, é uma relação — diria — menos direta e, portanto, menos grave. Mas igualmente inaceitável. Por que cargas d’água o fabricante de brinquedo, por exemplo, tem que se dirigir diretamente (pela propaganda da tevê) ao meu filho se ele não tem capacidade de discernir sobre a qualidade, a utilidade e a necessidade do produto?

O Código de Defesa ao Consumidor tem resposta para essa pergunta. Está lá no parágrafo 2º do art. 37 da Lei, já mencionado noutra postagem. Os publicitários têm a criança como alvo (target, o inglês aqui é revelador) da propaganda porque querem se aproveitar de sua “deficiência de julgamento e experiência”. E é por essa razão que o esse Código diz que essa publicidade é abusiva. Que me desculpem meus poucos (os que sobraram) amigos publicitários, mas não há como dourar a pílula: não vou nunca compará-los aos pedófilos, porém é inegável que a publicidade dirigida à criança também se trata de uma prática abusiva. Em sentido amplo, também é sacanagem.

Veja bem, não estou nem discutindo o conteúdo da mensagem ou a qualidade do produto oferecido. Não é essa a questão. O problema está na desconsideração da mediação necessária dos pais e responsáveis pela criança. Seja qual for a oferta: um abraço ou mesmo um cigarro. É indispensável que os pais possam se colocar entre o ofertante e a criança. Afinal, somos nós que respondemos primeiramente pela educação de nossos filhos; não o Estado, não a empresa de televisão e muito menos a agência de publicidade.

Isso não significa que apenas os pais sabem educar seus filhos. Mas até que se prove o contrário, são os pais as pessoas mais indicadas para decidir sobre a educação de seus filhos. Além do mais é o que nos garante a Constituição do Brasil.

Pode até ser que eu e minha esposa tomemos a decisão de deixar o João Pedro ser bombardeado junto com a gente pela publicidade apelativa voltada para o dia das crianças. Do mesmo modo que podemos decidir levá-lo ao cinema para ver um filme classificado como inadequado para a sua idade. Porque através da nossa mediação acreditamos que algumas mensagens e alguns conteúdos impróprios podem até nos ajudar a reafirmar valores fundamentais.

Tenho um amigo, Guilherme Canela, que dizia o seguinte (na época em que defendemos juntos a criação da nova Classificação Indicativa) quando questionado sobre o porquê uma criança poderia ouvir seus pais lhe contarem uma estória violenta e cruel como Chapeuzinho Vermelho, mas não poderia assistir sozinha um filminho impróprio para sua idade:


[...] Quando a criança lê ou ouve um conto de fada, utiliza tudo que seu atual estágio de desenvolvimento (vivências, inserção social e cultural, ambiente familiar etc.) lhe oferece para construir simbolicamente, para imaginar, aquilo que está lendo ou ouvindo. É exatamente esse exercício que se mostra fundamental para a elaboração de seus próprios medos, angústias e receios.



Entretanto, quando são os adultos – valendo-se, muitas vezes, dos mais modernos recursos tecnológicos – que oferecem as imagens que a imaginação da criança deveria produzir, podemos ter uma situação completamente distinta, que escapa do estágio de desenvolvimento desta ou daquela criança. Ou seja, uma coisa é um menino ou uma menina de 4 anos reproduzir mentalmente as cenas de Chapeuzinho Vermelho narradas pelos seus pais; outra, muito diferente, é o diretor de cinema Quentin Tarantino fazer o mesmo. A partir da releitura adulta dessas narrativas infantis, não será mais a criança com suas próprias potencialidades e limitações – advindas de seu contexto social e histórico e de seu grau de desenvolvimento biopsicológico – que estará criando as imagens dos contos que lê e/ou ouve.


No fim, parece que sou mesmo radicalmente contra essa publicidade dirigida abusivamente à criança. A culpa é do Alana.


terça-feira, 28 de setembro de 2010

O dia em que eu e os meninos fomos salvos pela consciência ecológica

Quando era criança “aprendi” com meu pai a fazer xixi no banho.


Tomei gosto pela prática e naturalizei-a, como um hábito sem maiores conseqüências. Até que um dia fui dormir na casa de meu primo. E minha tia, que sempre desempenhou um papel civilizatório em minha família, asseverou ao me ver fazendo xixi: “quem faz xixi no box, toma banho na privada”. Diante da força daquela sentença, entendi que era um vício, um péssimo hábito, e que, portanto, deveria praticá-lo às escondidas, porque a verdade é que criança nenhuma deixa de fazer o que é gostoso porque os adultos dizem que “não pode” ou “porque é feio”. Apenas continuam a fazer — tirar meleca do nariz, arrotar alto e ver novela na televisão, por exemplo — sorrateiramente.

Assim o foi nos últimos trinta e tantos anos, até que um dia fui buscar meus filhos na natação e, misturados às mães no vestiário dos meninos, coloquei os dois no banho para tirar o cloro e ambos começaram a fazer xixi no ralo do box. As outras crianças no mesmo instante disseram: — Olha Mãe, o que eles estão fazendo!

Desconcertado, tive de sussurrar aos meninos que só podia fazer xixi no banheiro de casa. Mas saí de lá com aquele peso do pai que transmite uma doença hereditária aos seus filhos. Passou um tempo e minha esposa trouxe para casa um exemplar daquela revista Sorria e qual não foi minha surpresa e satisfação quando verifiquei que havia uma recomendação expressa das entidades de proteção ao meio ambiente e um discurso muito bem articulado (com dados estatísticos e tudo mais) preconizando o velho xixi no box como uma forma eficaz de economizar água. Na hora já me senti novamente em paz com os homens de boa-vontade. Chamei minha mulher e contei que meu antigo hábito, já não era mais vício, tinha se transformado num ato de consciência ecológica, sem que se alterasse absolutamente nada no fato em si.

Agora, sempre quando vou buscar os meninos na natação, levo a revista debaixo do braço e fico doido pra dizer a quem nos acuse de porcalhões que nosso xixi é uma manifestação deliberada e consciente de respeito à natureza apoiada inclusive por Organismos Internacionais.

Para Angélica, Marcelo, Cecília e Murilo, com carinho

Comentando comentário - ai que saudades do inferno

Angélica, você tem toda razão. Concordo que é preciso oferecer (com delicadeza) às crianças uma educação ambiental capaz de torná-las conscientes de suas responsabilidades na preservação do (delicado) equilíbrio ecológico. Sou favorável até que a criança receba estímulos -- informações específicas -- para desenvolver, em algum grau, essa consciência.

Minha oposição (radical, foi apenas um arroubo) se restringe à publicidade, não à consciência ecológica pretensamente infundida por ela. Isto é, perco a paciência quando vejo propagandas que, a pretexto de incutir consciência em nossos filhos, projetam imagens ameaçadoras de um mundo devastado, sem água e sem floresta, para depois obrigá-los a um determinado comportamento. Ainda que invariavelmente concorde com o comportamente difundido: como ser contrário ao uso racional da água, à reciclagem, à compostagem, às restrições no uso de aerosóis?, entre outros exemplos de conduta responsável e consciente.

Digo que é terrorismo barato fazer com que uma criança economize água mostrando fotos de bois mortos às margens de um riacho seco no Sertão. Ou que não use papel branco exibindo um desenho animado com árvores chorando e morrendo pelos dentes de uma moto-serra malvadona. Não acho honesta nem eficaz a "educação" pelo choque e pelo medo. Esse é ponto. Para os adultos pode até ser que funcione mostrar fotos de fumantes amputados ou de carros destruídos por motoristas embriagados. Mas para as crianças é mais provável que esse tipo de publicidade só as ensine sofrer.

Acho que gosto mais daquela estratégia medieval de dizer à criança que ela vai para o inferno se fizer isso ou aquilo. Porque é só crescer um pouquinho para descobrir que se não tem Deus, logo não pode ter Diabo. Bem mais simples, bem mais fácil.

Conheço uma menininha que parou de dar descarga porque não queria acabar com a água de sua casa nem matar os peixes do mar com seu cocô. Fico pensando o que pode acontecer quando o Al Gore (Uma verdade inconveniente) contar para ela que o CO2 expelido com a respiração contribui para o aquecimento global.

Acredito que o único caminho é esse que você sabiamente tem seguido com Cecília; apesar dessa tal publicidade. Seus filhos vão aprender brincando de lavar prato, de amassar barro, de infantilizar formiga. Vão aprender a amar nossa terra por causa do exemplo poderoso de seus pais.

sábado, 25 de setembro de 2010

Criança, a alma do negócio (trailer)

Com a proximidade do dia das crianças é bom se precaver contra o bombardeio. Além de servir como abrigo anti-aéreo, este documentário oferece farta munição para se defender diariamente dos ataques sorrateiros do consumismo infantil. É só conferir:



Por que meu filho sempre me pede um brinquedo novo? Por que minha filha quer mais uma boneca se ela já tem uma caixa cheia de bonecas? Por que meu filho acha que precisa de mais um tênis? Por que eu comprei maquiagem para minha filha se ela só tem cinco anos? Por que meu filho sofre tanto se ele não tem o último modelo de um celular? Por que eu não consigo dizer não? Ele pede, eu compro e mesmo assim meu filho sempre quer mais. De onde vem este desejo constante de consumo?
 
Este documentário reflete sobre estas questões e mostra como no Brasil a criança se tornou a alma do negócio para a publicidade. A indústria descobriu que é mais fácil convencer uma criança do que um adulto, então, as crianças são bombardeadas por propagandas que estimulam o consumo e que falam diretamente com elas. O resultado disso é devastador: crianças que, aos cinco anos, já vão à escola totalmente maquiadas e deixaram de brincar de correr por causa de seus saltos altos; que sabem as marcas de todos os celulares mas não sabem o que é uma minhoca; que reconhecem as marcas de todos os salgadinhos mas não sabem os nomes de frutas e legumas. Num jogo desigual e desumano, os anunciantes ficam com o lucro enquanto as crianças arcam com o prejuízo de sua infância encurtada. Contundente, ousado e real este documentário escancara a perplexidade deste cenário, convidando você a refletir sobre seu papel dentro dele e sobre o futuro da infância.
 
Do sítio do Instituto Alana

Por ocasião do Dia mundial sem carro

Quarta-feira desta semana, 22 de setembro, foi o "dia mundial sem carro".
Um movimento, que cresce a cada ano (também) no Brasil, pela redução do número de automóveis e pelo aumento da utilização de transportes menos poluentes.

Há dois anos participo, principalmente porque dá pra envolver os meninos como se fosse uma grande brincadeira, uma farra, uma subversão da rotina. É o sentido que temos atribuído à mobilização.

Ano passado fomos todos de carroça para a escola. Maior curtição. Por dez reais, o Seu Constantino e sua égua Sabrina nos proporcionaram um passeio divertido e deslumbrante pela cidade. Fizemos a alegria dos meninos, a nossa e de um bocado de coleguinhas que nos viram maravilhados estacionar entre carros e carrões.

Pena que neste ano não deu. Embora estivéssemos forçosamente sem nosso carro (está quebrado na oficina), tivemos de recorrer a um carro alugado para dar conta da correria. Só daria para substituir o automóvel por um helicóptero. Enfim, não deu. Paciência, mas em compensação prometo que até dezembro vou buscá-los uma quatro vezes de ônibus e de bicicleta na escola.

Para os meninos não vai fazer nenhuma diferença e tampouco ao meio ambiente.
Talvez seja até melhor não envolvê-los no movimento para que eles não sejam alvo fácil da publicidade ecologicamente correta. Sou radicalmente contrário que a criança seja submetida a essa publicidade de advertência sobre a degradação do meio ambiente. Acho terrorismo barato ficar martelando na cabeça de um menino de 6 anos que ele não pode brincar com àgua porque senão vamos todos morrer de sede. É sacanagem exigir de um menininho tamanha consciência ecológica.

Se o Manuel de Barros cresceu infantilizando formigas, porque é que meu filho não pode passar a infância fazendo xixi em formigueiro? Se eu fosse sexólogo diria que esse esforço de acertar bem no buraquinho do formigueiro é um exercício fundamental para o desenvolvimento da sexualidade.

Sério, quase sempre vibro com a ousadia do GreenPeace e com as ações da WWF, mas não posso deixar de dizer que em termos pedagógicos suas campanhas e publicidades são danosas à infância e tão eficazes quanto a palmatória. Só não são piores do que a propaganda de brinquedos e alimentos destinados às crianças.

Aliás, vou logo dizendo que contra essa publicidade abusiva, que se aproveita "da deficiência de julgamento e experiência da criança" (§ 2º do art. 37 do Código de Defesa do Consumidor), estou há algum tempo em pé-de-guerra. Vou, inclusive, aproveitar a deixa para postar o trailer de um documentário excelente do qual tive a felicidade de participar. Realizado pelo Instituto Alana "Criança, a alma do negócio (Brasil)", dirigido por Estela Renner e produzido por Marcos Nisti da Maria Farinha Produções.

I-n-c-o-n-f-e-s-s-á-v-e-i-s (o que os pais pensam, mas não tem coragem de dizer)

"E eu chego a achar Herodes natural".

Basta ir ao shopping com meus filhos, dois amiguinhos e mais a Mi numa sexta-feira à noite para comer o pior e o mais vendido lanche do mundo para me lembrar dessa canção do Vinicius (Cotidiano nº 2).
Ainda bem que o refrão consola: "Mas não tem nada, não. Tenho o meu violão".

Mesmo assim juro que só volto com meus netos.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

É fácil ser irmão, difícil é ser companheiro

Costumava falar pros meninos que "é fácil ser irmão (basta nascer do mesmo pai e da mesma mãe), difícil mesmo é ser companheiro, parceiro um do outro".

Disse "costumava" porque ontem tive certeza de que não preciso mais. Meus filhos são amigos de verdade.

Brincávamos de futebol aqui na quadra do prédio. Nós três e outros dois coleguinhas. Um desses meninos chutou forte a bola contra o rosto do João. Caiu sentado com o impacto e deitou de dor. Corremos para socorrê-lo e o Antônio correu para o outro lado. Enquanto levantávamos o Dedé (que é o apelido do João Pedro), o Antônio já pulava o portão que dá acesso à garagem.
A Mi saiu voando atrás dele. E, sem chances de alcançar, gritou de longe: "Onde se vai, Antônio?"
Ele fez sinal com a mãozinha para que ela não avançasse e disse que ia falar uma coisa pro seu Luis, o porteiro do prédio. Ela acreditou e deixou que ele prosseguisse.

Minutos depois volta o Antônio correndo e segurando um saco com pedras de gelo para oferecer ao irmão.
O João riu gostoso quando a mãe interpelou o Antônio (mal escondendo sua satisfação: "mas que molequinho safado").

Fiquei com aquela sensação gostosa de dever cumprido, que com tamanha intensidade ainda não tinha experimentado na minha vida de pai.

domingo, 19 de setembro de 2010

Intra-uterinas (memórias de fora pra dentro da barriga)

Nesta semana que passou não fiquei de todo ausente. Só não escrevi para você. Porque, ao sentir-me mais tranqüilo em relação ao trabalho (é o nosso papo de amanhã; prometo!) e mais feliz, pude ficar ao lado de sua mãe e bem juntinho de você.

Por várias vezes passei a mão na barriga de sua mãe que, diga-se de passagem, já está bem saliente. Afinal você já está com 12 semanas de vida e segundo o “guia do bebê” possui mais ou menos 9,5 cm de comprimento e aproximadamente 14g. Já começou a ossificação, a surgir pêlos e a definir anatomicamente os órgãos sexuais... Tchan, tchan, tchan, tchan...

E tem mais: neste período de sua vida seus músculos funcionam, os rins produzem urina e seu rosto começa a se parecer mais com o rosto humano.

Isto é, você está ficando bonito. Como diria sua avó Célia: — está virando gente com “J” maiúsculo.

Digo “está ficando” porque, na qualidade de seu pai, tenho a obrigação de lhe dizer que na última ecografia, embora tenhamos ficado extasiados com sua imagem, você mais parecia um “marciano” (não que exista vida em Marte, que é um planeta do sistema solar; nós terráqueos é que criamos uma representação do marciano semelhante a um feto). Sua mãe já te acha maravilhoso, mas você um dia entenderá que na relação entre mães e filhos não há espaço para o senso crítico. Sobra então ao pai carregá-lo, ao menos de vez em quando.

Como hoje só passei para dizer “olá”, vou encerrando por aqui, até porque tenho ainda que “trabalhar” no nascimento de uma tal dissertação que também amanhã — é a segunda promessa — lhe explicarei. Boa noite, meu filho.

Escrito em 10 de junho de 2003

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Meu Miguilim

No aniversário da Emiliane, mãe do João Pedro e do Antônio, nós recebemos parte da família em nossa casa para uma pequena comemoração. Como de costume, tiramos fotos para registrar o presente, falamos do futuro (sobretudo, dos meninos) e, é claro, recordamos o passado vendo fotos antigas (do nascimento da Mi às últimas férias).

Entre outras recordações que guardamos no meio do álbum, Tia Gi, irmã da Mi, achou o texto abaixo que escrevi para o João Pedro há mais de um ano. Reli e achei que não “caberia” aqui no Filhosofias. Mas foi só voltar para Minas Gerais e me lembrar da alegria do Miguilim de João Guimarães Rosa, quando colocou seus óculos, para eu mudar de idéia.

Contudo, para que o texto faça sentido é necessário esclarecer, antes, o contexto em que foi escrito. Era setembro de 2009 e eu ainda estava morando em Brasília sem a Mi e os meninos. Voltava religiosamente todos os fins de semana para Catanduva. E no domingo, via de regra, ficava muito triste quando sabia que os meninos viveriam durante a semana e em minha ausência qualquer novo desafio. Tentando minimizar, ao menos para mim, o desconforto e o sofrimento da ausência, escrevia “cartinhas com hestórias” para que a mãe lesse para eles à noite ou quando fosse oportuno. Naquela semana, depois de passar por um exame oftalmológico no consultório do Vovô Waltão, o João Pedro colocaria seus primeiros óculos. No fundo, queria apenas segurá-lo pela mão e, sem dizer nada, ir lhe mostrando os detalhes de um mundo que só podem ser vistos com o olhar apurado e o coração puro. E como não pude, lhe deixei esta carta:

            João Pedro, meu filho amado,

            Vou te contar um segredo que há muitos anos uma velhinha muito bondosa, que fazia doces de banana em Ilha Bela, me contou. Mas antes de me contar, ela pediu que eu jurasse guardá-lo até o dia de revelá-lo ao meu primeiro filho.
            E eu perguntei a ela: “Mas eu nem tenho filho? E se um dia eu for pai, como saberei o momento certo de contar a ele o segredo?”.
            A velhinha, então, me respondeu que eu teria dois filhos lindos e de coração puro. E, antes que eu repetisse minha segunda pergunta, ela me falou que o segredo deveria ser revelado no dia em que o vento soprasse, quase ao mesmo tempo, dos quatro cantos do planeta e o meu primogênito pudesse ver o mundo melhor.
            Pois, você não vai acreditar, hoje é o dia!
            Enquanto eu trabalhava à noite aqui em casa senti o vento ventar de todos os lados: primeiro veio uma rajada do Norte, depois do Sul, terceiro do Leste e, por fim, do Oeste. Fiquei todo despenteado.
            Aí me lembrei que com seus óculos você pode agora ver tudo melhor. Nossa, como fiquei feliz, porque podia finalmente te contar este segredo: Deus não vive lá no céu. Ele vive dentro do coração das pessoas boas, que gostam de fazer o bem. Principalmente, no coração das crianças.
Por isso, quando você reza de noite — ou quando faz coisas boas — Deus gosta tanto que faz seu coração brilhar feito uma estrelinha.
É essa mesma estrelinha que depois vai pro céu; mas essa já é outra hestória...



PS: E ao me lembrar do Miguilim, me lembrei com saudades do Miguel, irmão de Maria e filho de Mônica e de Daniel. E também me lembrei que foi com essa “família Waldorf” que aprendi a contar hestórias para os meus filhos.

domingo, 12 de setembro de 2010

Ouro Preto para crianças

Como suspeitávamos, Ouro Preto é uma cidade difícil para se visitar com crianças. Um tanto porque quando foi construída (Vila Rica), há mais de três séculos, criança não era gente. Outro tanto porque ainda hoje existem limitações naturais e históricas que impossibilitam adaptações nas ruas e nos casarios da cidade capazes de facilitar o deslocamento de qualquer pessoa com mobilidade reduzida (de cadeirante a gente acima do peso, como eu).
Por isso, "Ouro Preto para crianças" só mesmo no colo e as costas dos pais.

A gente se cansou bastante, mas foi uma delícia; sobretudo o passeio de Maria Fumaça até Mariana (eles são obrigados a ficar quietinhos por 50 minutos).
Eles adoraram o Museu da Inconfidência, principalmente depois de eu ter contado com detalhes a execução da sentença de morte de Tirandentes (pela primeira vez me valeu a leitura do livro a Devassa da devassa de Maxwell, o único que li no Doutorado) e também a senzala da Casa dos Contos onde se pode ver toda sorte de equipamentos de tortura utilizados para controlar os escravos. Ficaram maravilhados com tanto terror.
O ponto alto da viagem, é sério, foi o passeio à Mina de Ouro de Passagem Mariana. Descemos a 120 metros de profundidade num desses carrinhos (troller) de mineração sobre trilhos em petição de miséria.
Esta é uma foto num dos muitos momentos de exaustão:


Bom, além da viagem a Ouro Preto ter sido uma grande aventura, a maior vantagem é que agora papai e mamãe finalmente se sentem seguros e preparados para levar os meninos pra passear até em Bagdá. Os iraquianos é que se cuidem!

terça-feira, 7 de setembro de 2010

Intra-uterinas (memórias de fora pra dentro da barriga)

            Acho que vou parar de ficar lhe contando as histórias que escrevi ao longo destes anos. Talvez eu não esteja lhe agradando como imagino.
            Penso até que posso estar abusando de sua paciência. Ou mesmo de sua capacidade de compreensão do pai que tem.
            Para que você entenda — se puder —, esta minha necessidade de ir lhe contando cada fração da história que pude registrar, sem muito estilo ¾ eu admito ¾, é preciso que eu lhe confesse que sou um escritor sem livros. Embora faça mais de dez anos que eu desejo escrever um.
Lá pelos dezesseis anos comecei a dar ao desejo contornos de um grande projeto. Inspirado pelo “ABC de Castro Alves”, de Jorge Amado, decidi que contaria em meu primeiro livro a história de minha vida; nada mais, nada menos: às favas com a modéstia e a auto-crítica, escreveria uma Auto-Biografia romanceada. Podia ter planejado reescrever o Evangelho de São Lucas, mas estava convencido de que a vida de Cristo não poderia ser mais interessante que a minha.
Não se assuste, meu filho, que a adolescência só não nos transforma em narcisos por obra e graça das espinhas (logo lhe digo que a acne teve um papel crucial em minha formação).
Fui então coletar os dados biográficos para o livro e, finalmente, descobri que havia muito pouco a contar de interessante. Mas não me dei por vencido, decidi que dali em diante levaria uma vida digna de ser narrada. Esta certamente foi a decisão que mais me impulsionou na juventude: é que me empenhando em viver para ter o que contar acabei tomando muito gosto pela vida.
Hoje, às vésperas dos trinta anos de idade e alguma maturidade nas costas, posso até admitir que não me faltam fatos e registros para compor minha própria história. É verdade que três décadas não é lá idade suficiente para a boa literatura, que via de regra, é tardia. Mas hoje também sei que entre os fatos e o romance, falta muita coisa. Principalmente, falta-me a capacidade de escrevê-lo.
Conclusão: agora que tenho você para conversar, assim tão disponível, fico tentado a ler alguns registros que fui acumulando. Pode ser que lhe interessem. Quem sabe? Sua mãe diz que sim. Eu desconfio que não. Ainda que eu espere exatamente o contrário.
De qualquer forma quero que fique a vontade para me dizer, ou melhor, para demonstrar — seja em sonho ou por qualquer outro tipo de manifestação visual — se lhe aborreço. O fato é que você tem um pai que é mais um daqueles escritores sem livros. Sou, confesso porque esta é minha sina, um pensador de livros que jamais serão escritos.
Uma pergunta que você poderia estar se fazendo agora é: O que explica este desejo de escrever ou ser escritor?
Eu sinceramente não sei. Mas li, há alguns anos, um texto de jornal que buscava explicar as motivações de um escritor de livros recorrendo às categorias da psicanálise. Mais ou menos, a psicanalista dizia que são três as motivações (imbricadas na maioria das vezes) que justificam um livro: primeiro vem a suposta quantidade e a qualidade das experiências vividas por seu autor, logo depois ,a suspeita de que tais experiências possam ser do interesse das pessoas, em geral, e, por fim, em terceiro, resta a certeza de que o registro literário de uma vida é, para muitos, a única possibilidade de sua perpetuação, de sua projeção para além de seus limites físicos.
Acho que ela tem razão; apesar da psicanálise. Bom ao menos no meu caso, parece que esta explicação faz sentido, ao menos em parte. Quanto aos escritores que pude conhecer ao longo destes anos, tenho fundada suspeita de que isso também seja uma verdade.
            Mas como toda explicação geral, a da psicanalista é apenas parcial. Porque ao mesmo tempo em que se aplica à maioria dos casos, não consegue explicar cada um deles em sua totalidade, ou não consegue ir além daquilo que os livros (e seus escritores) guardam em comum.
            A parte que nos falta, e que, portanto, devo aqui tentar explicar complementa a terceira motivação apresentada: a de que a gente escreve para superar a morte. Então, surge a pergunta: Mas perpetuar-se para quê?
            Bom, em meu caso, acho que sempre escrevi para que você pudesse me conhecer, sobretudo na hipótese de eu deixar de existir antes ou pouco depois de você nascer. No fundo, sempre pensei em projetar existências em livros ou por escrito para que, transpondo esta nossa condição humana e mortal, pudesse estar, todo tempo, ao alcance de meus filhos.
            Há tempos que venho dizendo ter apenas duas vocações na vida: ser pai e ser professor. Pensando melhor, agora com você tão próximo, creio que só tenho uma vocação: ser seu pai. Claro que continuarei sendo professor — não sei se lhe disse que esta é minha profissão — mas, hoje, tenho claro que a docência foi a ante-sala da paternidade. A alguns alunos cheguei a dedicar uma atenção filial, o que também me levou a escrever (não só livros sobre introdução ao Direito; lembra da carta de meu aniversário que eu lhe mostrei há uns dias atrás?), porém não com a mesma paixão e com a mesma necessidade que sinto agora.

Escrito em 3 de junho de 2003

domingo, 5 de setembro de 2010

A primeira frase escrita do João: "TODIO"


Para encerrar o domingo em grande estilo!

Quando a Mi chegou da missa com Antônio encontrou João Pedro todo arrumado com roupa de peão: calça jeans, camisa de manga comprida, botina e chapéu. Ele assim se vestiu para ir no apartamento de um amigo (o Marquinhos irmão da Duda) aqui do prédio. Estava realmente lindo e encantador. A mãe não resistiu e ficou brincando de provocá-lo: dizendo que ele estava ficando um rapaz muito lindo e que ela seria a primeira namorada dele e que não deixaria ele se casar...
O João ficou zangado, pegou uma caneta e escreveu no braço dela esta primeira frase de sua vida:


"Tédio?", perguntei eu quando vi o texto.
"Não", me contou a Mi, sob o olhar severo do João. "É uma frase inteira", disse ela.
"É a letra 'o', não a letra 'e'", tentou me explicar.
"Tódio?", questionei sem desconfiar.
Então, rindo ela ditou: "T (Te) OD(de)IO" [Te odeio].
E ele ficou ainda mais bravo, mas só de mentirinha.

Comentando comentário - fotos do aniversário do Murilo

Só depois de parir o Filhosofias é que fui me preocupar em compreender melhor as regras que governam a chamada blogosfera. Mas sem qualquer pretensão de ordenar e regular as coisas por aqui (minha religiosidade jurídica não chega a tanto). Fui atrás das regras supondo encontrar soluções prováveis para os problemas reais, imaginei que se pudesse conhecê-las antecipadamente poderia, por consequencia, evitar alguns desses problemas. Mas logo pude perceber que são poucas. Quase não existem regras sobre a relação blogueiro e leitores/seguidores/interlocutores. Quando muito se aplica as regras do jornalismo à relação, ou melhor, à comunicação estabelecida pelo blog entre postagens e comentários. Aplica-se, na melhor das hipóteses, a ética jornalística (sim, acreditem, existe uma).
E assim, depois de olhar por aí, ainda não encontrei na vizinhança resposta para o meu problema: devo comentar os comentários adicionados ao blog? como corresponder à expectativa das pessoas (sobretudo, amigas) que dialogam com o Filhosofias?
Bom, considerando que este blog quer ser (quando crescer) um canal de comunicação, não tem cabimento reduzir o Filhosofias às reflexões que sou capaz de realizar. É fundamental que haja espaço para a troca de informações, para os diferentes pontos de vista (incluindo a divergência) e para a reflexão conjunta.
Por isso, daqui em diante vou tentar "responder" aos comentários de duas formas: implicitamente, tratando dos temas e das questões levantadas nos comentários em novos textos, sem fazer menção expressa a uma ou outra pessoa; e as vezes de forma explícita falando diretamente com os autores dos comentários.

É esse o caso agora. Estou neste momento comentando o comentário que Angélica, amiga-irmã, fez sobre a questão das fotos dos filhos: "o que fazer quando os filhos não querem posar para foto?".
Antes de mais nada, vale reafirmar a absoluta importância de se registrar a vida de nossos filhos -- já que somos a nossa própria história -- sem contudo fazer da vida da criança um "Show de Truman". Tem pai que perde a oportunidade de fazer junto com seu filho apenas para fotografá-lo fazendo sozinho. Na festa junina do Colégio dos meus filhos, por exemplo, teve pai que não viu a festa toda, só o pedacinho que coube na tela de sua máquina. Melhor contratar um fotógrafo (e ratear com os outros pais).
Tirando os excessos, fotos e filmes são essenciais. Constituem nossa memória, nosso história e (insisto) nossa própria vida.

Portanto, se o filho (seja criança ou adolescente) não quer tirar foto nem sair no filme porque não gosta, não está afim ou tem vergonha das espinhas pelo rosto (era o meu caso) é preciso que os pais tenham um pouquinho de paciência, autoridade e rebolado. Só não pode abrir mão do registro.
Quando as crianças se recusam a posar para foto na festa anual da família com todo mundo reunido, da nona ao namoradinho de sua sobrinha, quase sempre é porque não querem parar de brincar. Resistem à foto tanto quanto recusam para para comer, as criança querem continuar brincando. Com os meus dois moleques acontece o mesmo. Mas sabendo os filhos que temos, Emiliane e eu aprendemos que na véspera da festa devemos dizer claramente aos meninos o que exigimos que eles façam (fica no ar a suspeita de que se não fizerem eles não vão à festa). No dia seguinte, a caminho da festa, basta relembrar as exigências:  1) ao chegar devem ir direto cumprimentar a Bisavó e o aniversariante (ou similar), 2) tirar a foto antes de ficar de cueca para brincar e 3) sentar para comer na hora que chamarmos. Tem dado certo. Mesmo de cara feia, os meninos estão em todas.
Outra coisa que acho legal com as crianças é fotografá-las e filmá-las em atividade, as vezes sem se fazer notar. Registro natural e, em regra, memorável (os meninos depois adoram se "assistir" nessas ocasiões). Ontem acabei sugerindo a uma "colunista social" de Catanduva que fizesse o mesmo com os adultos das festas para quais ela é convidada, tenho certeza que flagrar a espontaneidade das pessoas é um registro inestimável (disse "colunismo social" de primeira).

Sei que na festa do Murilo, dia 8 de setembro, vai ter foto na hora do bolo, foto com a família do Pai, da Mãe, com a Bisavó, com os amigos (só não vai precisar tirar foto com os amigos ausentes: tá vendo, Angélica, uma vantagem tinha que ter), etc.  Pode ser que ele fique bravo por ter que interromper uma brincadeira "só" pra fazer pose. Se for com a Bisa Maria, vale até sair chorando. Nos demais casos, os convidados é que têm a obrigação de se acomodar como puderem atrás do aniversariante, como fundo de tela.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

cabelo de pai

Acho que é um bom sinal.

O João Pedro de uns tempos pra cá tem se interessado pelas minhas fotos "antigas" e também de sua mãe.
Ficou empolgado (tanto quanto a gente) quando uma velha amiga -- Angélica é você! --- nos presenteou com retratos da adolescência.
Foi juntando as referêcias e hoje me disse meio que do nada: "Papai, você já teve cabelo de menina e de rockeiro, né?".
"De menina", contestei. "É, quando você era criancinha e não gostava que cortassem seu cabelo".
Tive que admitir: cabelo longo, logo cabelo de menina.
Aí perguntei: "Cabelo de rockeiro é aquele da faculdade?"
"Ahã".
"E hoje, João, tenho cabelo de que?", questionei pra encerrar o assunto.
"Cabelo de pai".

Pelo menos o cabelo...