segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Trigêmeos


Estamos em férias. A primeira vez desde que acabou o doutorado. Eu, a Mi, os meninos, meus sogros, minhas cunhadas e meu concunhado. No fundo, bem no fundo, só estamos eu e os meninos, porque não seria justo (se não fosse assim) depois tê-los feito esperar tanto. A Mi não só entende como fica feliz em nos ver assim juntos, feito o mar, o céu e o vento.

Ela cuida da gente (passa protetor solar, nos dá de comer, coloca no banho...) como se fossemos três crianças, três irmãos: seus três filhos, seus trigêmeos. Eu também adoro me sentir irmão do João e do Antônio durante a maior parte do dia.

Cheguei um dia a sonhar com um pouco menos do que isso. Nossa! A vida surpreende mesmo.

Quando li no final da adolescência O apanhador no campo de centeio (de J. D. Salinger) sonhei que a paternidade pudesse ser algo como esta “função” imaginada e descrita por Holden (o protagonista do livro):

[...] ¾ Seja lá como for, fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto ¾ quer dizer, ninguém grande ¾ a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que queria fazer. Sei que é maluquice.

Acho que achei que ser pai seria como passar o dia todo brincando como criança com meus filhos à beira de um precipício. De alguma forma suspeitava do tamanho da responsabilidade que a paternidade implicava, ainda que extremamente prazerosa e absolutamente gratificante.

Mas hoje, enquanto escuto a respiração dos meninos dormindo se conjugar em harmonia com o barulhinho das ondas, vou descobrindo que ser pai é ainda maior.

domingo, 28 de novembro de 2010

I-n-c-o-n-f-e-s-s-á-v-e-i-s (o que os pais pensam, mas não tem coragem de dizer)

Direto dos Classificados deste domingo:


Pai divorciado


PROCURA, para os fins de semana, bela babá capaz de amar profissionalmente seus filhos durante o dia e, o pai pela noite. Exige-se experiência (nos dois sentidos). Enviar currículo com fotos abundantes para [...].


Compreensível?

domingo, 21 de novembro de 2010

O parto do Antônio

Primeiro vou deixar que a Mi, com sua poesia, conte como foi o parto do Antônio.
Depois apresento minha versão dos fatos, que não é muito diferente: muda apenas a perspectiva.
Ela escreveu o relato abaixo para a seção "Deu errado, mas deu certo" da revista Pais&Filhos. O texto foi publicado na edição de setembro de 2008.
Ainda hoje me dá frio na barriga só de lembrar...

Aconteceu numa segunda-feira de manhãzinha, onze dias antes da data prevista para a chegada do nosso segundo filho, estava grávida de 38 semanas e naquele dia levaríamos à maternidade o plano de parto natural; mas às quatro e meia da madrugada acordei sentindo as primeiras contrações.
Meu marido, José Eduardo, estava dormindo. Uma hora depois do início do trabalho de parto comecei a sentir fraqueza e muito frio, então resolvi acordá- lo. Pedi que ele colocasse um colchonete no corredor de casa e ali fiquei sentindo as contrações, fazendo as respirações e posições que aprendi com a doula que acompanhou minha gravidez.
O trabalho de parto foi ficando cada vez mais intenso; meu marido ligou para o médico e naquele instante percebi que teria o bebê ali, pois senti a cabeça dele coroando e o líquido da bolsa escorreu de uma só vez. O médico, então ao telefone, disse que estava a caminho de casa.
Após falar com o médico, o Du pediu ajuda ao 192, e ainda teve de convencer o atendente que não estava exagerando, dizia que não era pai de primeira viagem e que o bebê estava mesmo nascendo.
Assim que desligou o telefone, ajoelhou-se para amparar nosso bebê, numa contração passou a cabeça e na contração seguinte escorregou nas mãos do pai. E assim veio à luz o Antônio, às 6 horas e 20 minutos daquela abençoada manhã, no corredor de casa e pelas mãos do meu marido.
Ele enrolou nosso bebê num lençol, o colocou em meus braços pra que eu o mantivesse aquecido e foi, mais uma vez, pedir ajuda.
Nesse momento pude ver o rosto do meu filho, ele estava chorando alto e forte. Olhei fundo nos olhos do Antônio, segurei a mãozinha dele e pedi que ficasse tranqüilo, pois eu sentia que estava tudo bem, nós dois estávamos bem. Sua pele enrugada e seus olhinhos miúdos, ora curiosos, ora desconfiados e incomodados pela suave claridade (que chegava ao corredor do nosso pequeno apartamento), me fizeram derramar algumas lágrimas.
O cordão umbilical permaneceu nos ligando durante todo tempo que estivemos ali imóveis, nos olhando e esperando. Quando o cordão havia parado de pulsar eu e o Antônio já nos conhecíamos profundamente.
Devo ter rezado duzentas Ave-Marias em trinta minutos, o tempo que levou do nascimento à chegada do médico e da ambulância. Imaginamos que um dos dois poderia chegar antes. Chegaram juntos.
Nesse momento o cordão foi finalmente cortado, o Antônio mamou bastante, conheceu seu irmão, João Pedro (que acordou sozinho como se nada tivesse acontecido ali, bem ao lado da porta do seu quarto), e adormeceu.
Avisamos nossa família, arrumamos tudo e fomos para o hospital. Lá, o Antônio pesou 3,1kg, mediu 49cm e tomou seu primeiro banho. Ele era um recém-nascido saudável e de muita sorte. Hoje ele está com 1 ano e 6 meses, é um bebê doce, tranqüilo, bonito e inteligente, que adora brincar e bagunçar com seu irmão.
Foi uma vivência forte, inesquecível e maravilhosa. Guardo uma sensação como se tivesse sido tocada por uma Luz Divina, tamanha a intensidade e sincronia de cada detalhe durante o trabalho de parto e o momento do nascimento, em especial.
Mãe, pai e filho pulsando juntos. Eram três corações batendo como se fossem um. Tinha tudo pra dar errado só que deu muito certo, mais do que havíamos sonhado.

Prova de que deu certo e de que continua dando: Antônio e João Pedro.

sábado, 13 de novembro de 2010

Circular do cordão umbilical


Todo mundo já sabe que vivo falando para os meus filhos que eles são guerreiros porque são inteligentes, fortes e têm bom coração. E digo também que a primeira grande batalha de cada um foi vencida no parto, porque nasceram lutando. Sobre a batalha, ou melhor, sobre o parto do João Pedro falei recentemente. Já sobre o triunfo do Antônio, falo amanhã.
Por hoje quero registrar que foi minha mãe quem começou com essa hestória de meninos guerreiros que lutam pra nascer. No fim das contas, com o João e com o Antônio, estou apenas escrevendo os dois capítulos que me cabem.

Nos momentos difíceis minha mãe fazia questão de me lembrar que eu havia nascido com duas circulares do cordão umbilical no pescoço e por muito pouco não tinha morrido. Com orgulho e os olhos rasos d’água, ela, então, costumava contar a hestória de meu nascimento com vida ou a história de como venci a morte ainda bebezinho.
É que há trinta e sete anos a circular do cordão era sinônimo de complicação no parto e de risco de morte para o nascituro, assombrando pais e médicos. Hoje em dia sabemos que não só as circulares são comuns (ocorre de 30 a 40% dos partos) como não trazem grandes perigos, embora tenha muito pai e mãe se descabelando desnecessariamente com a ultra-sonografia que antecede o trabalho de parto.
Na Catanduva de 1973 ainda nem se falava em ultra-sonografia obstétrica e, por isso, minha mãe só veio a saber que eu tinha as duas circulares no pescoço — e que era um menino — quando eu já estava em seus braços são e salvo. Durante o trabalho de parto ela se lembra apenas do Dr. Waldemar Curi pedindo para fazer força: “Vamos turca! Até parece que não come quibe.” Isso ajuda a entender o relato histórico que minha mãe foi construindo enquanto eu crescia, diga-se de passagem, a bem de minha auto-estima. Pois, pelo que ouvia de minha mãe e para minha ignorância de menino, julgava-me uma espécie de Super-Tiradentes: afinal havia me safado da forca "quase" sozinho.

            Os anos se passaram e quase me esqueci dessa minha própria hestória. Até que um dia, no início do casamento, a Mi resolveu me questionar sobre meu “estranho hábito de enrolar o lençol em volta do pescoço” enquanto dormia.
            Na hora fiquei surpreso, porque ela me perguntava como se eu soubesse que o lençol amanhecia todos os dias enrolado ao redor de meu pescoço. E quando eu disse que nunca havia reparado nisso, foi ela quem ficou pasma.
            Refleti um tempo sobre o “hábito” e concluí que, de fato, devia ter sido tão marcante aquela experiência de nascer com o cordão no pescoço que, ao adormecer, automática e inconscientemente recriava aquela relação fazendo uso do lençol. Dei por resolvido o enigma e, mais uma vez, deixei toda hestória de lado.

            No entanto, fui “surpreendido novamente” em 2002, quando fomos a uma festa no Terreiro de Mãe-menininha-do-Gantois, em Salvador. Lá finalmente descobri que as crianças nascidas com circulares do cordão umbilical são filhas do velho Oxalá, conhecido como Oxalufã. Gostei e fiquei feliz com a descoberta, mas não retomei a hestória iniciada por minha mãe.

Aí, em 18 de dezembro de 1973, o João nasceu com a sua circular do cordão. E me dei conta de que era chegada a hora de assumir a minha responsabilidade nessa hestória. E que Oxalá me dê forças para seguir o curso.

Comentando comentário - São Jorge é de Ogum e do Gantois

Não é segredo pra ninguém que da Angélica aceito até provocação barata.
Pois é, ela fez um comentário só pra me dizer que “Jorge é de Capadócia...”.
Dá pra acreditar?

Vai dizer isso logo pra mim que o conheci pessoalmente. Foi o próprio Jorge quem me disse: “sou baiano, ou melhor, soteropolitano, de Federação e, para ser exato, do Gantois”. Me disse ainda que “apesar disso, era um santo modesto”.

Enfim, não há dúvidas que São Jorge é de Ogum e do terreiro do Gantois, de Ilê Iyá Omin Axé Iyá Massê.

Aliás, o Antônio, meu segundo filho, também é de Ogum. Mestre das armas, dos metais e da guerra foi dormir depois de me pedir desculpa por ter chutado minha nuca durante nossa brincadeira de luta. Antes, tentou cortar o meu pescoço com sua espada, mas felizmente a espada é de plástico. Esta foi mais uma sexta-feira que eu escapo da degola.

O João Pedro quando ainda era pequenininho foi reclamado nos búzios por Xangô, meu pai e meu rei. Mas como o pai-de-santo era meio chinfrim, não me convenci. Embora ele tenha a nobreza dos filhos de Oba e os olhos de Iansã. No fundo, só não o entrego  Xangô porque ele nasceu com as circulares do cordão umbilical no pescoço, que é o signo de Oxalufã. Como tenho respeito e apreço pelos mais velhos, acho bom esperar por um gesto do velho Oxalá.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Homem precisa viajar

Para Aurinha

            Li o livro Mar sem fim de Amyr Klink por causa deste trechinho que conheci numa apostila escolar (era uma questão de vestibular) de minha sobrinha Paola:
Hoje entendo bem meu pai. Um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser; que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver.
            Não é preciso dizer que o livro de Amyr tem outras tantas coisas bonitas de ler e de ver (desenhos de baleia, fotos de geleiras, cartas náuticas e uma foto de suas filhas na praia de Jurumirim...). Mas esse pedacinho aí de cima considero especial. Vale um quadro e muito mais.
            Porque essas palavras contêm uma sabedoria antiga, transmitida de pai para filho há séculos. As palavras revelam e, ao mesmo tempo, preservam a essência do que somos nós, os homens.
            Estou me referindo a homens como gênero. À essência do que é masculino, desde a antiguidade. E olha que sou cheio de pruridos para falar em essência, porque acredito piamente que os seres humanos são aquilo que querem ser, nos limites da História, evidentemente. Talvez seja a única exceção que eu faça: um homem se constitui dessa necessidade de viajar, de se conhecer nos limites seus e do mundo.
            Sem forçar a barra é possível encontrar evidências em todas as culturas e em todos os tempos. Do nomadismo à volta de bicicleta no quarteirão, passando pelas grandes navegações. Um homem [é aquele que] precisa viajar.
            Para “criar meninos” é fundamental saber disso. Meu pai, com sua simplicidade, soube me soltar e me deixar partir. Mas sempre cuidou para que eu voltasse, ou melhor, para que eu não morresse na jornada (o ponto não é atrair o filho para a casa, mas cuidar para que fique vivo e possa retornar). As vezes de um jeito sutil — me dizendo “sua cabeça é seu mestre” —, as vezes de forma contundente — pedindo a alguém para zelar por mim.
            É o que tento agora fazer pelos meus filhos.
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O mais engraçado é que sendo um “homem do caminho”, como me revelou em 1992 uma cigana da rua General Jardim lá de São Paulo, agora que sou pai fico angustiado só de pensar em viajar sem os moleques.
Não gosto de dormir fora da casa. Volto sempre, nem que seja muito tarde; chego, pelo menos, a tempo de cobrir os meus filhos e apagar a luz do corredor.

Comentando comentário - bati no meu filho...

Aurinha,

            Por mais que eu queira, certamente não vou conseguir dimensionar o que você está sentindo. Mas, acredite, posso compreendê-la. E mesmo sem saber o que exatamente aconteceu — a gravidade do que ele fez —, sinceramente acho que reagiria do mesmo modo.
            Mas é preciso admitir que foi uma reação emocionada, passional, em resposta à violência que ele, de alguma forma, produziu contra você e contra ele mesmo. Me parece que é importante reconhecer um certo descontrole momentâneo (embora você tenha agido com coerência e racionalidade ao cumprir a “ameaça”, ao impor a sanção do tapa) até para que você consiga dar um segundo passo e caminhar em busca de uma solução para o problema, sem ficar se penalizando pelo ocorrido.
            No entanto, admitindo que os pais nem sempre podem oferecer o melhor auxílio aos seus filhos em situações extremamente delicadas (por isso é provável que o melhor médico-cirurgião do mundo não seja a melhor pessoa para operar seu filho vitimado por um acidente), talvez seja a hora de buscar o auxílio de um terceiro, de uma outra pessoa que não esteja diretamente envolvida no conflito.
            Como você sabe, meus filhos ainda são crianças, mas quando nem sonhava em ser pai de meninos tive a oportunidade de agir como um terceiro (um mediador) em conflitos entre pais e adolescentes. No caso mais difícil pelo qual passei, também porque foi o primeiro, tentei ajudar uma mãe e seu filho adolescente a restabelecerem a comunicação já profundamente degradada: primeiro pelas drogas e depois pelas agressões mútuas. Como não havia um pai entre os dois, acho que pude ajudá-los a dar o próximo passo. Procure ajuda, compartilhe a sua dor, seus medos e, eventualmente, sua frustração por ele não ser o que você gostaria que ele fosse (e vice-versa).
            Infelizmente, não há processo de maturação sem algum sofrimento. É claro que por isso não vamos desejar sofrer, mas é preciso acreditar que o conflito é também uma oportunidade de aprimoramento pessoal e que todo esforço de superação nos faz necessariamente mais humanos, mais capazes de refletir sobre as conseqüências de nossos próprios atos.
            Coragem e tenha fé no seu amor.

domingo, 7 de novembro de 2010

Oração de São Jorge de Ogum

(Wassily Kandinsky - São Jorge I, óleo sobre tela, 1911)


Eu andarei vestido e armado com as armas de São Jorge para que meus inimigos, tendo pés não me alcancem, tendo mãos não me peguem, tendo olhos não me vejam, e nem em pensamentos eles possam me fazer mal. Armas de fogo o meu corpo não alcançarão, facas e lanças se quebrem sem o meu corpo tocar, cordas e correntes se arrebentem sem o meu corpo amarrar.

Glorioso São Jorge estenda-me o seu escudo e as suas poderosas armas, defendendo-me com a sua força e com a sua grandeza, e que debaixo das patas de seu fiel ginete meus inimigos restem subjugados.

Assim seja com o poder de Deus, de Jesus e da legião do Divino Espírito Santo.

São Jorge Rogai por Nós. Oguniê, saravá!


sábado, 6 de novembro de 2010

A capa mágica invisível

Disse na postagem abaixo que não encontrei o registro que procurava sobre uma birra antiga, mas encontrei este outro fato que me fez refletir sobre a importância das coisas que contamos aos nossos filhos.

O que vou contar a seguir diz respeito àquele período — de março a novembro de 2009 — em que “vivi” longe da Mi e dos meninos: passava a semana trabalhando em Brasília e ficava os sábados e os domingos em Catanduva. Os registros foram feitos nos dias 27 (quinta-feira à noite) e 28 (sexta-feira de manhã) de agosto de 2009:

Hoje de noite, em torno das 22h, o João Pedro me ligou aos prantos.
Assustei bastante.
Então ele me disse — “Papai, vem pra cá agora”.
Finalmente entendi o porquê “A saudade é o revés de um parto”.
[primeiro – 27/08]


Eu não ia registrar o que disse em resposta ao João ontem à noite, mas depois do telefonema que acabei de receber da Mi preciso falar.
Quando já estava me preparando pra dormir, fui pego de surpresa pelo choro e pelo pedido emocionado do João. Com o coração retorcido, tive de dizer a ele que eu não poderia aparecer ali, ao lado dele, naquele momento, pois eu não tinha poderes para realizar esta mágica. Porém, eu conseguiria fazer uma outra mágica bem forte pra ele.
Aí ele parou de soluçar para me ouvir. Disse que se ele colocasse o meu pijama e deitasse no meu lugar na cama (da mamãe), eu faria minha alma voar pela noite e pousar sobre ele para cobri-lo igual a uma capa invisível, enquanto eu não chegasse. Ele ficaria quentinho e bem protegido até que eu pudesse embarcar num ônibus e “picar a mula” para Catanduva
De madrugada (a Emiliane não o horário), João Pedro acordou a mãe para lhe contar que “a mágica do papai deu mesmo certo, [pois] olha mamãe eu estava descoberto, mas meus pés continuaram quentinhos”.
[segundo – 28/08]

Chorei que nem gente grande. Muito mais por saber que no domingo à noite me separaria de minha família novamente.

Então, para tentar suavizar a dor de mais uma despedida, resolvi dar seqüência à estória da capa mágica invisível. Costurei algumas referências pessoais com estórias que o João já conhecia e acho que consegui fazer uma bela capa para presenteá-lo.

Primeiro fui me inspirar na estória da capa da invisibilidade (invisibility cloak) de Harry Potter. Quem leu o livro a Pedra Filosofal vai se lembrar que Harry recebe a capa como um legado de seu pai James. Ela é oferecida ao Harry como uma forma de proteção na ausência dos pais (que estão mortos há anos), embora ele a utilize para correr mais riscos. A capa do Harry, no entanto, não pode protegê-lo de todos os feitiços e de qualquer outra forma de agressão física (no último livro da série a gente fica sabendo que a capa é uma das Relíquias da Morte).
A capa que eu fiz para o João Pedro (e também para presentear o Antônio, quando fizer 4 anos) é bem mais poderosa que a do Harry, porque para criá-la tive uma ajuda divina. Na verdade, duas ajudas: de Nossa Senhora do Calvário e de São Jorge de Ogum. É que ainda criança, menininho, minha mãe me garantiu que a Virgem Santa do Calvário — protetora do Colégio em que estudei a vida inteira — me colocaria debaixo de seu manto protetor e impenetrável sempre que eu estivesse ou me sentisse em perigo. E não é que funcionava? Pois quando sentia medo no escuro do quarto era só cobrir a cabeça com o cobertor imaginando que um pedaço do manto me guardava. Usei esse “meu pedaço” para fazer a capa do João.

Por fim, bordei com uma linha cor de prata aquela conhecida oração de São Jorge de Ogum (tão divinamente interpretada pelos Racionais Mc’s) no centro da capa e, assim, transformei o manto numa armadura extremamente leve, maleável e indestrutível.

Antes de ir embora para Brasília, como registrado acima, coloquei cerimoniosamente a capa sob os ombros do João e amarrei, como se praticasse um ritual. Ele me perguntou se podia nadar com a capa. Eu respondi que ele não precisa tirá-la para nada, inclusive nadar. Aí ele me perguntou se podia mostrá-la para o seu melhor amiguinho na época e eu lhe respondi que, como a capa era invisível, o seu amiguinho não poderia vê-la, mas apenas acreditar nela.

Pude voltar para Brasília um pouco menos carregado. E assim, um pouco mais leve, fiquei até o almoço do dia 31 de agosto. Como de costume, naquela segunda-feira fui comer com um grande amigo que me ajudava a fazer a transição dolorosa entre as cidades. Contei com empolgação a hestória da capa mágica invisível e falei com entusiasmo da fé do João Pedro.

Mas ao invés de se congratular comigo pela criação (como esperava), meu amigo franziu o cenho para me repreender:
“E se o amigo resolve atirar uma pedra nas costas dele só para testar a capa?”
“E se o João resolver parar um caminhão com o poder da capa?”
“E se ele tentar voar com a capa?”
“E se...”

“Pode parar”, interrompi e reagi de imediato: disse um palavrão e pedi que ele batesse na boca. Mas, no fundo, fiquei preocupado. Mudamos de assunto porque ele sacou meu drama.

Voltei para o trabalho ensimesmado, considerando os riscos que o João poderia correr só por causa das minhas invenções. Passei o dia meio desligado pensando numa maneira de consertar o que havia feito.

De noitinha, antes de telefonar para a Mi, conversei com um outro grande amigo sobre minhas preocupações, já me sentindo culpado pelo que eu imaginava que pudesse acontecer (cabeça de pai...). E não é que o Damião conseguiu me tranqüilizar? Daquele seu jeitão incrédulo desenvolveu um raciocínio tão cheio de referências significativas para mim (e para ele), citando Kolberg e dando exemplos pessoais, que acabou me convencendo que o João Pedro possuía maturidade suficiente para não se meter em enrascada por causa da capa. Não sem antes, contudo, me perguntar se eu conhecia um filme chamado Crash. “Não”, respondi. Ele ficou visivelmente intrigado porque, nesse filme tinha uma estória exatamente igual a que eu contei, inclusive (ele se lembrava) com o ritual solene da entrega da capa. Daí ele me contou o surpreendente fim da estória e eu fiquei novamente em dúvida sobre o que fazer com a capa.

Resolvi ligar para a Mi e tudo se resolveu; aliás, como sempre. Foi o João Pedro que atendeu o telefone para me perguntar se ele poderia guardar a capa. “Por que?”, perguntei. Ele respondeu: “— Porque eu não quero que estrague”. Parece incrível, mas era a deixa que eu precisava para tentar melhorar as coisas.

Falei, enfim, que ele podia guardá-la quando quisesse [a mamãe sabia desamarrar], mas que a capa não estragaria com o uso. A capa mágica invisível só estragaria, disse, se você usá-la sem necessidade, sem que você esteja realmente em perigo. Pensei em dar exemplos, mas no mesmo instante descartei para não dar idéia errada. Concluí reforçando que a capa o protegeria de todos os males, desde que ele continuasse sendo um moleque bom e obediente.

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Sosseguei tanto que fui me lembrar de assistir o filme Crash quase um ano depois (peguei em junho deste ano na locadora da “Tia Tati”, que já foi Megamil e agora é 100%). Fiquei ao mesmo tempo estarrecido e feliz com coincidência das estórias e a semelhança das capas.

Selecionei abaixo os dois trechinhos do filme em que a capa é a protagonista principal para quem quiser conferir. Como não tem legenda, segue uma sinopse das cenas:
Em sua casa Daniel conversa com sua filha, Lara, que está escondida debaixo da cama por ter ouvido o barulho de um tiro (do bairro violento). Para confortar Lara, Daniel lhe dá uma “capa invisível e impenetrável”.
Um cliente insatisfeito (é mais do que isso) aborda Daniel quando ele está chegando em casa do trabalho. Lara vê o pai sendo ameaçado com uma arma apontada para o seu peito e corre para protegê-lo com a capa. Assim que ela se joga no colo de seu pai a arma é disparada e Daniel sofre por acreditar que ela foi atingida. Mas Lara está ilesa como se o tiro não tivesse penetrado (noutra cena do filme descobrimos que eram balas de festim). Daniel, chorando, sai carregando sua filha nos braços ao encontro de sua esposa.

http://www.youtube.com/watch?v=KDW1tnr4Auk

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Uma saída honrosa (e eficaz) para birras

Tentei encontrar no “Caderno dos Meninos”, onde desde a primeira gravidez lanço apontamentos imediatos sobre o que vivencio com meus filhos, um registro de uma birra que o João Pedro deu num supermercado de Brasília nos idos de 2006 quando ele tinha em torno de três anos, um pouco mais do que o Enzo, filho da Melina.

É que eu queria oferecer os detalhes de como tudo se passou. Ou melhor, de como conseguimos — eu e o João — evitar um desfecho trágico. Mas infelizmente não encontrei (deve ter escrito numa folha em separado).

De qualquer forma o contexto é muito parecido com o da Melina, a única diferença da padaria para o supermercado é a quantidade de prateleiras porque o apelo ao consumo (no conjunto) é o mesmo.
Lembro-me que a Mi já estava grávida do Antônio e eu estava sempre ocupado demais com as coisas do trabalho. Naquele dia cheguei em casa ainda mais tarde, encontrei o João Pedro a mil por hora e a Mi exausta. Ele disse que queria comer bombom e eu achei que era um ótimo pretexto para aliviar a cansaço da mãe e a culpa do pai. Peguei o carro e lá fomos nós.

Até que nos divertimos bastante com o carrinho e com os peixes mortos. Tomei uma cerveja, ele um achocolatado, pegamos os bombons (os dele e os da mãe) e nos dirigimos para o caixa.

Entramos nessas filas de caixa rápido formadas por corredores de biscoitos, balinhas e supérfluos em geral (que costumamos chamar de “porcarias”, embora gostemos de comer). A intenção é uma só: coagir o cidadão a comprar o que não é necessário, o que está fora da lista, porque se fosse importante ele teria comprado antes. E o filho do cidadão, que não tem idade para entender a maldade, quase enlouquece. O pai, é claro.

Deve ter durado uns cinco minutos nossa espera, tempo suficiente para eu falar “não” umas 30 vezes (um “não” a cada 10 segundos são 6 por minutos multiplicados pelos 5 que passamos na fila). Mas dei sorte, porque nesse dia a maioria dos enfileirados era de pais que pareciam compreender a minha situação e que me ofereciam apoio a cada negativa.

No entanto, depois de passar as mercadorias pelo caixa e entregar o cartão para pagamento me dei conta que o João Pedro, sentado dentro do carrinho, tentava abrir uma caixinha dessas balas ardidas (tipo Tic-Tac). Zup! Arranquei a caixinha das mãos dele e disse “não”.

Pela reação descontrolada do João tenho certeza que alguém na fila deve ter pensado que eu havia arrancado um braço dele ou furado os olhos do menino. Acho que só não saí correndo e deixei meu moleque gritando e esperneando porque a moça estava com meu cartão de crédito.

Pedi para ele parar. Mas que nada, nem me ouviu.

Agi rápido, sem pedir outra vez e fazer ameaças: segurei firme o João pelos braços e o tirei do carrinho de supetão. Ele se assustou, sentiu o tranco e diminuiu o tom e o volume da birra. Segurei-o firme num desses abraços de judoca. E com ele dominado (embora continuasse chorando e berrando) pude digitar a senha e concluir a compra.

Num clarão repentino, num laivo, percebi que só tinha duas alternativas: sair correndo e deixar o João aos cuidados do gerente do Supermercado (pois já estava com o cartão) ou oferecer a ele uma saída honrosa para a birra (sem humilhações para nenhum de nós)

Pensei, enfim, que as alternativas não eram excludentes, desde que eu tentasse a saída honrosa primeiro. Foi o que fiz e até hoje é o que faço, porque dá muito certo.

A saída honrosa é nada mais nada menos do que uma mudança abrupta do foco da birra. Isto é, ao invés do pai ficar dizendo “João Pedro, não adianta gritar que eu não vou levar” ou “Olha só o que você está fazendo” ou “Agora que eu não levo nem os bombons” ou “Vou estrangulá-lo quando a gente chegar em casa”, entre outras coisas que as mães costumam falar, ao invés de ficar valorizando o descontrole da criança é muito mais simples surpreendê-la com uma sugestão ou um comentário inusitado do tipo: “João vamos pegar essas caixas de papelão do supermercado para fazer uma fogueira lá em casa?”

No mesmo instante ele parou de chorar e prestou atenção em mim. Aí pedi a ele que pegasse também mais umas sacolinhas de plásticos que pegam fogo fácil. E emendei uma hestória em que meu primo Fernando tinha pisado descalço num plástico derretido e teve que ir para hospital... Pronto, tudo sob controle novamente e pudemos voltar felizes da vida pra casa.

No caminho nem toquei no assunto da birra. Só quando fui tirá-lo da cadeirinha do carro, depois de estacionar em casa, é que falei olhando nos olhos dele: “Filho, acho que você se esqueceu que na nossa casa quem faz birra nunca consegue o quer. Mas agora você já se lembrou, né?”

Ele me fez um jóia com o dedo errado e fomos comer os bombons junto com a Mi.