sábado, 29 de janeiro de 2011

A imposição das escolhas por ROSELY SAYÃO

Daqui em diante vou postar textos de outras pessoas que contenham considerações filhosóficas. Mas só de vez em quando...

______A imposição das escolhas______
VOCÊ TEM filhos com menos de seis anos, leitor? Que tal garantir a eles a oportunidade de viver como crianças pequenas que de fato são? Um bom começo é deixar de dar tanta importância à preparação delas para um futuro exitoso.


Pois é: hoje, as crianças perdem esse período precioso da vida, e tão breve, porque decidimos que, quanto mais cedo elas forem introduzidas ao manuseio das ferramentas do mundo adulto, maiores serão suas chances quando tornarem-se adultas.


Essa postura, cheia de boas intenções, é um componente importante no processo em curso que promove o desaparecimento da infância no mundo contemporâneo. E você sabe, leitor, o que significa ser criança sem ter a chance de viver a infância? Não. Ninguém sabe ao certo como é a vida das crianças neste mundo. Entretanto, temos algumas pistas a esse respeito. Ansiedade, insônia, depressão, inquietação constante, medo, hipertensão, obesidade, doenças do aparelho digestivo etc., males que antes eram exclusividade do mundo adulto, hoje são frequentes na infância, inclusive na primeira parte dela.


Pressa, pressão, compromissos, deveres. Nada disso combina com os primeiros anos de vida. O que combina? Tempo, material e oportunidade para brincar, por exemplo. Ou para nada fazer: só olhar, observar, participar da vida de um modo muito particular.


Crianças dessa idade podem aprender informática, línguas, esportes, letras e números? Podem. Precisam disso? Não precisam. Pelo menos não do modo como temos feito. Criança com até seis anos aprende brincando. Mas ela não deve brincar para aprender determinado conteúdo e sim aprender algo, por acaso, brincando apenas. Simples assim.


Outro caminho para deixar a criança viver a infância a que tem o direito é não passar a ela as responsabilidades que são nossas. Não se espante, leitor: fazemos isso diariamente. Escolher a roupa que vai vestir, o brinquedo que quer ganhar, o calçado que quer usar, o horário em que vai se recolher para descansar, qual escola vai frequentar, se vai atender a imposição familiar ou se vai desobedecer... Quantas escolhas permitimos que elas façam e que deveriam ser só nossas! Vamos convir: escolher algo é um processo complexo até para um adulto, não é verdade? Quem não pena para escolher se muda de emprego ou não, se casa ou permanece solteiro, se rompe um relacionamento amoroso desgastado ou deixa a coisa rolar, se usa esta ou aquela roupa em uma ocasião especial, entre outras situações? Pois essas escolhas, que são tão importantes na vida de um adulto, porque interferem no eixo vital deles, são similares às escolhas que obrigamos as crianças pequenas a fazer. Sim: obrigamos.


Elas querem, elas pedem por tudo isso e atendemos -é assim que preferimos pensar.


Elas até podem querer, mas nós é que devemos saber o que faz bem a elas ou o que fará com que padeçam. Por não suportarmos o sofrimento que a criança experimenta quando é desagradada, temos feito com que sofram muito mais. Se você conseguir poupar seus filhos menores de seis anos do processo de fazer escolhas complexas e permitir que eles passem esses primeiros anos de vida apenas brincando sem qualquer outro objetivo que não o de se divertir, dará a eles uma vida presente muito rica. E essa é a melhor maneira de preparar um futuro melhor.

ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)

Folha de S. Paulo, Ilustrada, 25/1/2011

Link: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq2501201113.htm

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Os braços quebrados do menino Jesus

Quem não se lembra deste soneto aí embaixo do Gregório de Matos*?

Tenho certeza que muita gente vai se lembrar do poema, porque aparece em toda antologia poética que se preze. Faz parte de apostilas e de livros didáticos utilizados para “ensinar” Literatura no Ensino Médio (antigo Colegial). Quando fiz Cursinho me recordo claramente de como era utilizado para ilustrar o emprego da metonímia, uma figura de linguagem que também caracteriza o barroco. Eis os quartetos e os tercetos:

ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO DO MENINO DEUS DE N. S. DAS MARAVILHAS, QUE DESTACARAM INFIÉIS NA SÉ DA BAHIA

SONETO

O todo sem a parte não é todo;
A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo o todo.

Em todo Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte desse todo,
Um braço que acharam, sendo parte,
Nos diz as partes todas deste todo.


Maravilhoso, não? Mas ainda mais bonito fez o Antônio.

Esse meu segundo filho, que não fica nem um pouco atrás do “Boca do Inferno”, tentou consertar os dois bracinhos da imagem do menino Jesus, que ele mesmo quebrou, com a seguinte prosa-poética. Vale a pena escutar.

Estávamos só nos dois em casa (acho que a Mi tinha saído pra comer lanche com o João).

De banho tomado, deixei o Antônio em seu quarto para que colocasse o pijama e fui para o banheiro esperá-lo para escovação.

Ele demorou um pouquinho mais do que deveria. Logo imaginei que estivesse envolvido com outra coisa (perigosa, em regra). Chamei: “Vem, filho, escovar os dentes para dar tempo do papai ler mais estórias”.

E lá veio ele segurando entre as mãozinhas uma imagem do menino Jesus, que fica no criado-mudo de seu quarto. “O que isso, filho?”, perguntei. “Papai, olha só o que aconteceu sem querer: quebrou os dois braços do Jesus. Você conserta, papai?”.

Não querendo encompridar a conversa, isto é, sem exigir dele maiores explicações como costumo fazer, disse que tentaria colar no dia seguinte. Podia ter encerrado o assunto, mas resolvi dizer que o menino Jesus ia ficar triste com os braços quebrados (nossa, que bobagem a minha!).

Ainda bem que, na lata, o Antônio respondeu: “Não vai não, papai. Olha só a ‘calinha’ dele de feliz. Nem doeu”.

Taí um exemplo de emenda que saiu melhor do que o soneto.








* Eis um trechinho do Esboço Biográfico escrito por José Miguel Wisnik:
 “... Mas a lira dos ‘Matos incultos da Bahia’ foi realmente enriquecida no terceiro nascimento, o de Gregório, a 20 de dezembro de 1633 (ou 36), que recebeu o sobrenome materno de Guerra.
Em Coimbra, Gregório formou-se em Direito; em Lisboa teria sido, durante muitos anos, juiz do Cível, de Crime e de Órfãos, segundo as diversas informações. Aí se enfronhou nas poéticas do tempo [...] O certo é que voltou ao Brasil em 1681 [...] Um caso para o advogado Gregório: um sujeito que comprou o cargo de Juiz na Vara de Igaraçu, processou um outro por não chamá-lo pelo título. Defendendo o réu, argumenta o poeta: ´Se tratam a Deus por tu, / e chamam a El-Rei por vós, / como chamaremos nós / ao Juiz de Igaraçu? / Tu, e vós, e vós, e tu’.
A virulência da sátira do ‘Boca do Inferno’, motivada seja pela crítica da corrupção, dos desmandos administrativos, dos arremedos da fidalguia local ou pelo puro e cortante prazer sádico, lhe valeu a deportação para Angola. [...]
Há quem insista em fixar alguns gestos como a imagem da sua exorbitância: uma cabeleira postiça, um colete de pelica, uma vontade de ficar nu, um escritório adornado com bananas.
Morreu piedosamente, segundo testemunhos, em 1696.”

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Feliz Ano Novo e, finalmente, adeus Ano Velho!

Desejo um Feliz Ano Novo aos pais, às mães e aos demais malucos que, em algum momento da vida, decidiram ter filhos (mesmo àqueles que só puderam decidir depois do susto de uma gravidez não-planejada e também àqueles que ainda nem ficaram grávidos, pois o que importa é a decisão).

E eu queria mandar um beijo para a Patrícia, minha irmã, e para o Onésio que tiveram o desplante de nascer no réveillon. E para homenagear todos os amigos que fazem aniversário em janeiro — o Fernando Carvalho, a Marina Oliveira, a Tia Marta e, ontem, o Leo Barbosa — eu postei a mais bela canção que existe sobre o tema: “Feliz aniversário” de Alvarenga e Ranchinho (pena que não são os dois que cantam).

Não, não é o Ano Novo chinês que estou comemorando. O Filhosofias ainda segue o calendário gregoriano, mas, como o tempo também é uma questão subjetiva, minha “passagem” foi um pouco mais longa. E por muito pouco este blog não consegue completar a travessia de 2010 para 2011. Isto é, quase o abandonei pelo caminho.

A primeira justificativa que formulei (comigo mesmo) para acabar com o blog foi meio dissimulada, como quando a gente na adolescência pedia um tempo pra namorada só pra não ter que dizer “acabou e pronto”. Pensei com meus botões: “Vamos todos tirar umas férias e quando a Angélica, o Marcelo, a Cecília e o Murilo voltarem, nós voltamos também”.

Já a segunda justificativa foi apenas uma variação daquela velha desculpa esfarrapada da falta de tempo: “O Filhosofias ficou pesado demais, não dá para carregá-lo nas costas pelas madrugadas adentro. Vou fazer exercícios físicos de manhãzinha que eu ganho mais, ou quem sabe, perco a barriga”.

A terceira, um pouco mais honesta, foi: “Estou ficando viciado nisso, se não escrevo todos os dias e não consulto as estatísticas da audiência (quem leu, quem comentou, de que país, a que horas, etc.) parece que fica faltando alguma coisa”.

A quarta justificativa foi mais ou menos o oposto da segunda, tal como o apresentador de TV que faz de tudo para conquistar mais público e depois reclama que não consegue tomar um pileque sossegado nas areias de Copacabana sem ser incomodado pelos fãs: “Acho que as postagens acabam expondo excessivamente a mim e a minha família, além do que criam expectativas reais, ainda que os relacionamentos sejam exclusivamente virtuais. O Pequeno Príncipe estava certo quando disse aquela pieguice de ‘tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas’”.

Formulei a quinta justificativa depois de ter lido nas férias Ana Karênina do Tolstoi e Pai e filho do Tony Parsons, que, guardadas as devidas proporções de tempo e lugar, são livros que dispensam quilos e mais quilos de blogs: “Como é que eu posso ter o descaramento de tomar o tempo de mães e de pais com essas postagenzinhas pretensiosamente perscrutadoras sabendo que existe tanta literatura de primeira-linha por aí? O Filhosofias faria muito mais pelas crianças se se dedicasse tão somente a instigar os adultos a ler Machado, Saramago, Tolstoi, Guimarães Rosa...”

A sexta justificativa que arrumei para parar de filhosofar em público foi mais uma manifestação do cabra-macho que existe em mim (meio velho, mas existe): “Cansei de conversar sobre criança; parece até que sou mãe, que assisto novela, que sei bordar, que arroto discretamente e que torço pro São Paulo. Daqui a pouco vou começar a falar dos ‘homens’ para minhas amigas leitoras como se eu fosse aquele amigo gay que toda mulher pensa que precisa ter”.

Aí quando estava pensando numa sétima hipótese para não mais escrever, compreendi que o buraco era realmente mais embaixo e que eu seria capaz de encontrar mil e uma justificativas só para não ver a assombração que, de novo, me paralisava.

Trauma

Quem acompanha o Filhosofias sabe que as postagens intituladas “Intra-uterinas” dizem respeito ao diário que escrevi durante a gravidez do João Pedro. Mas provavelmente tenha passado despercebido — até para Angélica — que comecei aquele papo sobre o aborto dizendo ao João (um bebezinho tão indefeso) que conversaríamos sobre um outro assunto ainda mais difícil tanto para mim quanto para ele.

Acontece que naquela época — mais ou menos no início da gestação — eu não tinha idéia do amor gigantesco e avassalador que fundamentaria minha condição de “pai, de verdade” ao fim dos nove meses. Por isso eu disse ao João, talvez mais como mestrando e menos como pai, que necessariamente teríamos que prosear sobre um outro assunto.

Olha só, tão espinhoso me parecia a conversa que não fui capaz, lá nos idos de 2003, de dizer claramente do que se tratava. E quanto mais me aproximava do meu filho e de seu parto, mais me sentia incapaz de tocar no assunto.

E não toquei mais. Pois, parei de escrever o diário porque já não sabia como prosseguir com meu diálogo (é quase um oxímoro, né?) intra-uterino. E fui me dedicar aos trabalhos manuais da casa e do quarto do bebê.

Contudo, depois do Apgar 3 do João (contei na postagem O parto do João Pedro) e diante dos risco de seqüelas neurológicas, frequentemente me sentia de súbito acossado por pensamentos ruins, desses que nos pegam desprevenidos e nos fazem sofrer só de lembrar (que um dia pensamos). Mais que depressa agitava a mão sobre a cabeça como se pudesse abanar e dissipar as nuvens carregadas que o medo nos traz. Era, no fundo, aquele outro assunto que não ousava enunciar.

Ano após ano via o João Pedro crescer em coragem, em bondade e em inteligência, sem qualquer problema. E, assim, com o passar do tempo fui ficando tranqüilo e seguro de que o outro assunto havia perecido.

Até que, no finalzinho de dezembro de 2010, sete anos se passaram e quando eu me preparava para finalmente falar do que nunca falei e enfrentar o trauma, sucumbi novamente: não dei conta de escrever coisa nenhuma e achei que seria mais fácil encerrar o blog do que o assunto.

Bom, evidentemente, não foi dessa vez. O Filhosofias superou o meu trauma e continuará a seguir o seu curso, firme e forte, como Frei Caneca do Amor Divino um dia sonhou.

Saravá.