quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Os braços quebrados do menino Jesus

Quem não se lembra deste soneto aí embaixo do Gregório de Matos*?

Tenho certeza que muita gente vai se lembrar do poema, porque aparece em toda antologia poética que se preze. Faz parte de apostilas e de livros didáticos utilizados para “ensinar” Literatura no Ensino Médio (antigo Colegial). Quando fiz Cursinho me recordo claramente de como era utilizado para ilustrar o emprego da metonímia, uma figura de linguagem que também caracteriza o barroco. Eis os quartetos e os tercetos:

ACHANDO-SE UM BRAÇO PERDIDO DO MENINO DEUS DE N. S. DAS MARAVILHAS, QUE DESTACARAM INFIÉIS NA SÉ DA BAHIA

SONETO

O todo sem a parte não é todo;
A parte sem o todo não é parte;
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo o todo.

Em todo Sacramento está Deus todo,
E todo assiste inteiro em qualquer parte,
E feito em partes todo em toda parte,
Em qualquer parte sempre fica todo.

O braço de Jesus não seja parte,
Pois que feito Jesus em partes todo,
Assiste cada parte em sua parte.

Não se sabendo parte desse todo,
Um braço que acharam, sendo parte,
Nos diz as partes todas deste todo.


Maravilhoso, não? Mas ainda mais bonito fez o Antônio.

Esse meu segundo filho, que não fica nem um pouco atrás do “Boca do Inferno”, tentou consertar os dois bracinhos da imagem do menino Jesus, que ele mesmo quebrou, com a seguinte prosa-poética. Vale a pena escutar.

Estávamos só nos dois em casa (acho que a Mi tinha saído pra comer lanche com o João).

De banho tomado, deixei o Antônio em seu quarto para que colocasse o pijama e fui para o banheiro esperá-lo para escovação.

Ele demorou um pouquinho mais do que deveria. Logo imaginei que estivesse envolvido com outra coisa (perigosa, em regra). Chamei: “Vem, filho, escovar os dentes para dar tempo do papai ler mais estórias”.

E lá veio ele segurando entre as mãozinhas uma imagem do menino Jesus, que fica no criado-mudo de seu quarto. “O que isso, filho?”, perguntei. “Papai, olha só o que aconteceu sem querer: quebrou os dois braços do Jesus. Você conserta, papai?”.

Não querendo encompridar a conversa, isto é, sem exigir dele maiores explicações como costumo fazer, disse que tentaria colar no dia seguinte. Podia ter encerrado o assunto, mas resolvi dizer que o menino Jesus ia ficar triste com os braços quebrados (nossa, que bobagem a minha!).

Ainda bem que, na lata, o Antônio respondeu: “Não vai não, papai. Olha só a ‘calinha’ dele de feliz. Nem doeu”.

Taí um exemplo de emenda que saiu melhor do que o soneto.








* Eis um trechinho do Esboço Biográfico escrito por José Miguel Wisnik:
 “... Mas a lira dos ‘Matos incultos da Bahia’ foi realmente enriquecida no terceiro nascimento, o de Gregório, a 20 de dezembro de 1633 (ou 36), que recebeu o sobrenome materno de Guerra.
Em Coimbra, Gregório formou-se em Direito; em Lisboa teria sido, durante muitos anos, juiz do Cível, de Crime e de Órfãos, segundo as diversas informações. Aí se enfronhou nas poéticas do tempo [...] O certo é que voltou ao Brasil em 1681 [...] Um caso para o advogado Gregório: um sujeito que comprou o cargo de Juiz na Vara de Igaraçu, processou um outro por não chamá-lo pelo título. Defendendo o réu, argumenta o poeta: ´Se tratam a Deus por tu, / e chamam a El-Rei por vós, / como chamaremos nós / ao Juiz de Igaraçu? / Tu, e vós, e vós, e tu’.
A virulência da sátira do ‘Boca do Inferno’, motivada seja pela crítica da corrupção, dos desmandos administrativos, dos arremedos da fidalguia local ou pelo puro e cortante prazer sádico, lhe valeu a deportação para Angola. [...]
Há quem insista em fixar alguns gestos como a imagem da sua exorbitância: uma cabeleira postiça, um colete de pelica, uma vontade de ficar nu, um escritório adornado com bananas.
Morreu piedosamente, segundo testemunhos, em 1696.”

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