quinta-feira, 17 de junho de 2010

Intra-uterinas (memórias de fora pra dentro da barriga)

Não sei se adiei conscientemente esta nossa primeira conversa ou se de fato e inconscientemente precisei destes quase três meses em que você chegou para conseguir superar as primeiras dificuldades que a condição de pai parece me impor.

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Bom, antes de mais nada, creio que devo lhe explicar porque estou lhe tratando como se soubesse que seu sexo é masculino.

Saiba que até agora não sabemos — e pelos recursos atualmente disponíveis pela medicina nem poderíamos saber — se você é menino ou menina. Pelo que sua mãe me disse (ela leu numa agenda/manual da gravidez que logo, logo você conhecerá) você deve estar com uns dois centímetros de tamanho, e também pelo que posso me lembrar de meus estudos de biologia (esta conversa fica para depois, mas saiba que sempre gostei de estudar biologia a ponto de pensar em ser médico) seu organismo ainda não apresenta grandes distinções em relação aos demais mamíferos: é preciso lhe contar que sua forma se confunde com a de um macaquinho no ventre de sua mãe. É verdade! Um dia você saberá que essa semelhança nada tem de errado; muito pelo contrário, ela só revela a “correção” da natureza no processo de seleção das espécies (olha eu aí complicando de novo...) Apesar de saber que sua mãe, sua avó e sua madrinha não gostam que eu faça tais comparações, eu continuo fazendo para que você entenda a minha dificuldade em dizer “filho ou filha”, para que você perceba a dificuldade em estabelecer qualquer relacionamento entre nós. Talvez estas dificuldades de pai — que são aqueles mamíferos humanos que não possuem as condições necessárias para gestação —, esta certa distância natural, já que você está crescendo dentro de sua mãe (acredito que isso você já sabe, não é preciso que eu lhe diga), justifiquem a inexistência de livros escritos por e para papais sobre o período de gestação de seus filhos.

Eu decidi assumir minhas dificuldades, meu desconhecimento sobre como devo me relacionar contigo, sobre como devo lhe chamar. Pois mesmo diante de todas estas dificuldades — que no fundo não são tantas e nem tão relevantes como pareciam há duas semanas atrás —, eu sinto uma grande necessidade de me comunicar com você, de lhe conhecer e de amá-lo ainda no ventre.

Não sei se será João ou se será Maria. Assim sendo não estranhe caso eu mude a forma de tratamento nas próximas vezes em que nos falarmos. Não tenho certeza, vou procurar checar nos livros de sua mãe, mas acho que podermos conhecer seu sexo a partir do quarto mês de gravidez.

Mas você pode estar se perguntando: por que então você não me trata como filha?

Porque a esta altura você é o assunto principal em nossas vidas, e o que mais fazemos é palpitar sobre seu sexo, seu nome, suas semelhanças, sua personalidade... enfim, vivemos especulando sobre você.

Já se passaram dois meses em que nós sabemos sobre sua existência, dois meses desde que fui buscar o resultado do exame (este é o próximo capítulo desta nossa longa conversa), e até então tanto eu quanto sua mãe em momento algum conseguimos pensar em você como menina.

E saiba que sempre quando me imaginei como pai, via-me cercado de filhas. Três. Nunca pensei em ser pai de machos. Tanto é assim que temos um monte de nomes de meninas acumulados ao longo dos nossos 10 anos de convivência (um dia lhe falo sobre mim, sua mãe e nosso amor que é da onde você foi concebido), e apenas um ou dois nomes de menino.

(sua mãe chegou agora de um chá de bebê de uma amiga nossa e acabou nos interrompendo para contar como foi bom estar entre amigos e levá-lo para passear; aí eu aproveitei para contar a ela tudo o que havíamos conversado. Vou tentar retomar da onde paramos)

Esta nossa percepção de que nascerá menino é, em muito, decorrência das características que convencionalmente são atribuídas aos homens num mundo de feições machistas. Isto é, ao relacionarmos sua ousadia em não se adequar aos nossos planos, sua habilidade de superar os obstáculos (saiba que sua mãe tem o útero invertido isso significa que o espermatozóide teve de subir uma ladeira para se encontrar com o óvulo), sua capacidade de decisão (você quis nascer e... pronto!), enfim, ao relacionarmos essa sua personalidade forte ao sexo masculino estamos revelando e admitindo parte de nossos preconceitos. Mas não é só. Existe algo mais que ainda não podemos lhe explicar porque apenas sentimos (você aprenderá que na maioria das vezes o sentimento é muito anterior à explicação). Tentarei mais adiante.

Escrito em 17 de maio de 2003

2 comentários:

  1. Du, filhosofias... o nome já diz tudo, não é que vc complica, vc filhosofa de verdade; olha que eu, uma das protagonistas dessa história, estou aguardando o próximo capítulo, ficou perfeito. Parabéns. Amo você. Mi.

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  2. Q carta mais bonita! E que assim seja para sempre!

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