domingo, 12 de junho de 2011

A herança da geração "pescoço de frango"

            O personagem principal desta estória, Laurindo Barbosa, é bisavô de um grande amigo. Completou em janeiro último cento e sete anos, fazendo questão de dizer que mesmo tendo perdido a virilidade não perdeu a lucidez. Depois de conhecê-lo e ouvi-lo falar cheguei a pensar que ele poderia ter se inspirado na resposta que aquele velho homem do livro Emílio de Rousseau oferece ao Rei Luis XV, quando questionado sobre o século de sua preferência: “Senhor, eu passei minha infância reverenciando os velhos. Sinto-me forçado a passar minha velhice reverenciando as crianças”. Mas seu bisneto, que realmente é meu amigo, garantiu-me que ele sempre foi um homem simples, um enfermeiro prático sem qualquer erudição.
Laurindo Barbosa gosta de provocar os mais moços, isto é, todo mundo, dizendo que nos últimos cem anos nada mudou. E antes que alguém esboce qualquer reação apresenta o seu testemunho como prova. “Mas não se trata apenas do testemunho ressentido de um velho”, diz ele. “É a história de toda uma geração, da ‘geração pescoço de galinha’” arremata.
Começa sua narrativa pedindo aos seus ouvintes que o acompanhem num retorno ao passado. Na verdade, um retorno ao raiar do século XX, à sua infância em Ribeirão Preto no Estado de São Paulo, onde viveu com sua família até se mudar para Catanduva em meados daquele século.
Mais precisamente, um retorno a um almoço de domingo quando, ainda criança, sentava-se à mesa com seus numerosos familiares. Nesse momento Laurindo Barbosa interrompe seu relato para indagar de forma abrupta seus ouvintes: “— E o que é que se servia aos domingos à refeição de todos os parentes?” Sem aguardar pela resposta, ele diz: “— Isso mesmo, frango assado e macarrão!”.
Mesa posta, cada coisa e cada um em seu devido lugar, Laurindo nos convida a observar atentamente como se dá a distribuição do frango em sua família; sim, apenas da galinha, porque o macarrão era (“como ainda hoje o é”, ele ressalta) distribuído sem restrições à cor, ao gênero, à religião e à idade do comensal. Interessa investigar a repartição e distribuição da galinha.
Laurindo faz uma pequena pausa para olhar para cada um de seus interlocutores e, então, indaga: “Quem é capaz de dizer em qual prato será depositada a porção de carne mais nobre da galinha, o peito?”.
Se alguém se arrisca e responde que é no prato do pai, Laurindo abre um sorriso para dar os parabéns a todos e segue contando sua estória com mais empolgação. Agora se a resposta não for essa ou se ninguém responde, ele fecha a cara e ameaça parar com o relato porque ninguém está verdadeiramente interessado em ouvi-lo (só depois de muita insistência e bajulação é que ele continua).
“E por que para o pai?”, pergunta. Ele mesmo explica: “Ora, é o pai quem responde pelo sustento da casa, pelo provimento dos familiares, ele é o chefe da mais fundamental estrutura da sociedade, é a garantia presente de bem-estar para todos aqueles que de seu trabalho dependem”.
Prosseguindo na observação, pode-se ver para quem vai o segundo pedaço da galinha (provavelmente, uma coxa): trata-se do varão, do primogênito que se ainda não trabalha com o pai logo mais estará com ele ganhando o “pão com o suor de seu rosto”. E depois do pai e do irmão mais velho do narrador, quem recebe a outra coxa da galinha? Quem disser que é a mãe do Laurindo Barbosa ainda não conseguiu se transpor para o contexto social anterior à vigência do Código Civil de 1916.
De fato, o terceiro contemplado é o avô. “Surpresos?”, pergunta Laurindo Barbosa encarando-nos. Ele esclarece então que, há cem anos atrás, o velho tinha uma importância inquestionável na sociedade: era, senão o maior, um dos grandes responsáveis pela manutenção e reprodução das tradições que garantiam a estabilidade das expectativas sociais e a integração entre as pessoas.
Após o avô é que finalmente a mãe fazia seu prato: comia, talvez uma das asas e os nacos de carne resultantes das divisões anteriores. “Claro”, diria Laurindo se a ele interessasse uma análise jurídica daquela ceia: depois do principal segue sempre o acessório, tal como determinava a legislação daquele tempo; isto é, tendo saciado o macho pode a fêmea se saciar.
Seguia-se a distribuição da galinha às crianças da família em ordem decrescente: das mais velhas às mais novas. É neste momento que se pode visualizar com nitidez a presença de Laurindo Barbosa de calças curtas e com o prato esticado para receber, por fim, seu pescoço de galinha. Sem discutir as peculiaridades da condição de “caçulinha”, sobrava para o protagonista o pedaço considerado de menor prestígio, indicando, portanto, seu lugar, ou melhor, o lugar da criança na sociedade daquela época.
Pode parecer estranho a muitos, mas naquele contexto sócio-cultural a criança era tão somente um projeto de gente, uma possibilidade de pessoa. Por isso que o Ordenamento Jurídico não lhe conferia a titularidade de direitos. Às crianças aplicava-se a tutela dos pais (o chinelo e o marmelo) e, quando não bastava, cabia ao Estado aplicar o código de menores. Para evidenciar esta sub-condição social da criança convém lembrar da denominação atribuída (até hoje) à escola infantil anterior ao ensino fundamental: jardim da infância, porque é no jardim que se deve plantar as “sementinhas de gente” que, um dia, germinarão a florescerão como sujeitos plenos de direitos e responsabilidades.
Realizado o flash-back descrito acima, Laurindo Barbosa atualiza a cena de domingo, colocando seu leitor à mesa de sua família diante da panela de macarrão e da travessa contendo o galináceo, desta vez, já destrinchado. Mais uma vez, chama atenção para distribuição da galinha e, conseqüentemente, para organização social que tal partilha indica.
Hoje, terceiro milênio, transcorridos mais de um século daquele outro almoço em Ribeirão Preto, não há dúvidas de que para a seguinte pergunta haverá uma única resposta: quem recebe a galinha em primeiro lugar?
Laurindo fique feliz da vida por ouvir a maioria responder em coro e sem hesitar: a criança. Sinal de que prestamos atenção na estória.
Hoje em dia pode-se verificar que em qualquer família, rica ou pobre, as crianças comem antes mesmo que o pai. Nem precisam se sentar à mesa; comem vendo televisão. Apenas depois das crianças são servidos os demais, em condições de igualdade. Com exceção dos velhos que, face ao ocaso das tradições, foram relegados à condição de sujeitos improdutivos, de obstáculos à estabilização das contas públicas. E, assim, os velhos acabam ficando com pescoço de galinha. Do mesmo modo que ficavam as crianças há um século atrás. Daí porque Laurindo Barbosa diz que sua estória é a história de toda uma geração que ele denomina “geração pescoço de galinha”: quando criança comeu do pescoço e agora, como velho, continua a comer dessa mesma carne; dois momentos de uma única condição, a sub-cidadania.
Embora não fale em sub-cidadania, Laurindo termina seu testemunho enfocando a marginalização do velho na sociedade. E sem dizer mais nem uma palavra, permanece por alguns instantes com o olhar fixo no horizonte até que seus olhos se encham d’água sensibilizando todos a sua volta.
Meu amigo jura de pé junto que seu bisavô é tratado como um rei na família e que seu relato é a denúncia da situação em que vivem os demais velhos da vizinhança, do país. O resto é mise-en-scène.
Voltando um pouco atrás na narrativa, interessa-me sublinhar a mudança radical de posição vivenciada pela criança nos últimos cem anos. Entretanto, para vislumbrar e depois compreender essa inversão extraordinária da condição da criança (que parece ter atingindo o auge no século XX), é necessário ver além da carne de pescoço depositada no prato. Do contrário, nada terá mudado.
Assim, a partir desse relato, podemos entender porque as crianças têm prioridade absoluta à mesa e em quaisquer outras situações. Por conseqüência, poderemos compreender o texto do artigo 227 da Constituição Federal de 1988 que expressamente diz: “É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e a convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

A compreensão paradigmática do texto e do contexto

Mas, por que houve esta mudança?
Impossível identificar a totalidade de fatores e relações que promoveram tamanha transformação. Todavia, pode-se apontar alguns entendimentos que sustentam a conexão entre o lugar que a criança ocupa nesta sociedade (contexto) e a condição de sujeito de direito a que foi alçada pela legislação, sobretudo, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (texto). Philippe Ariès (1981) produziu um dos estudos mais robustos sobre o surgimento da infância, investigando a formação histórica da família na França entre o fim da Idade Média e o início da Modernidade. As informações que ele oferece sugerem que a criação da infância é resultado de uma diferenciação funcional da sociedade (a essa altura já percebida como um sistema) que, por sua vez, resulta de uma progressão moral da humanidade. Desta forma, com base nas considerações de Ariès e nas considerações críticas de Bobbio sobre a questão kantiana do “constante progresso para melhor”, parece correto afirmar que os textos normativos modernos marcam/assinalam cada estágio desse processo constante — para não dizer progresso — de complexificação social (do qual o texto constitucional citado é o exemplo por excelência).
Por isso, se a criança é percebida como o futuro do país, sobre a qual se depositam as expectativas sociais e os projetos individuais de uma vida melhor, nada mais coerente do que protegê-la e promovê-la; pois, todos nós entendemos que o desenvolvimento das crianças resulta na realização de cada um. A criança só pôde ser priorizada como sujeito de direitos no texto da Constituição porque era, em 1988, e ainda é prioridade em nossas vidas seja qual for o contexto. Ao longo dos anos fomos nós, os adultos, que decidimos garantir à criança o que comemos de melhor, o que vestimos de melhor, o que sabemos de melhor e etc.




PS: Em 2003, eu contei essa estorinha pela primeira, com algumas poucas diferenças, em minha dissertação de mestrado. No ano passado resolvi repetir a narrativa em minha tese de Doutorado. Porque, sempre quando posso contá-la, as pessoas costumam me dizer (depois) que a estória é esclarecedora. No dia 10 de junho, sexta-feira, repeti a dose na Conferência de abertura do Fórum Permanente de Empreendedorismo e Inovação da UNICAMP e, para a minha grata surpresa, a maioria dos presentes parece ter gostado muito. Espero com essa postagem poder demonstrar um pouco mais o quanto fiquei feliz com a oportunidade do encontro com os participantes do referido Fórum. Obrigado, em especial, à Sandra, à Ana Beatriz e à Carina.

PS2: Em tempo: na verdade o Laurindo Barbosa era o meu bisavô, avô de minha mãe. Mas que, na prática, foi meu avô também porque o pai de minha mãe, de quem recebi o nome, morreu muito cedo. Ao menos, para mim.

5 comentários:

  1. Uau! Como desconfiava: o tal do pescoço de frango tem muito mais sustância. Só não gostei mais porque dessa vez a estória não ao vivo e em cores. Obrigada, S.

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  2. De tanto falarem, resolvi conferir. E já me arrependi de não ter ido a sua palestra. Legal! Fla.

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  3. sergiogamarra@gmail.com14 de junho de 2011 às 23:11

    Salve, Professor Romão. Essa estória eh velha, mas continua boa. Então, quer dizer que o Laurindo Barbosa era seu bisavô? Jura?

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  4. Adorei. Principalmente, a parte que me toca ao final. :)
    Bj, Ana Beatriz

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  5. José eduardo, a pergunta eh: se nós que oferecemos o peito aos nossos filhos fomos educados com a coxa por aqueles que cresceram comendo opescoço, o que será servido aos nossos netos?
    Vale filhosofar muito a respeito, não?
    AC

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