sábado, 6 de novembro de 2010

A capa mágica invisível

Disse na postagem abaixo que não encontrei o registro que procurava sobre uma birra antiga, mas encontrei este outro fato que me fez refletir sobre a importância das coisas que contamos aos nossos filhos.

O que vou contar a seguir diz respeito àquele período — de março a novembro de 2009 — em que “vivi” longe da Mi e dos meninos: passava a semana trabalhando em Brasília e ficava os sábados e os domingos em Catanduva. Os registros foram feitos nos dias 27 (quinta-feira à noite) e 28 (sexta-feira de manhã) de agosto de 2009:

Hoje de noite, em torno das 22h, o João Pedro me ligou aos prantos.
Assustei bastante.
Então ele me disse — “Papai, vem pra cá agora”.
Finalmente entendi o porquê “A saudade é o revés de um parto”.
[primeiro – 27/08]


Eu não ia registrar o que disse em resposta ao João ontem à noite, mas depois do telefonema que acabei de receber da Mi preciso falar.
Quando já estava me preparando pra dormir, fui pego de surpresa pelo choro e pelo pedido emocionado do João. Com o coração retorcido, tive de dizer a ele que eu não poderia aparecer ali, ao lado dele, naquele momento, pois eu não tinha poderes para realizar esta mágica. Porém, eu conseguiria fazer uma outra mágica bem forte pra ele.
Aí ele parou de soluçar para me ouvir. Disse que se ele colocasse o meu pijama e deitasse no meu lugar na cama (da mamãe), eu faria minha alma voar pela noite e pousar sobre ele para cobri-lo igual a uma capa invisível, enquanto eu não chegasse. Ele ficaria quentinho e bem protegido até que eu pudesse embarcar num ônibus e “picar a mula” para Catanduva
De madrugada (a Emiliane não o horário), João Pedro acordou a mãe para lhe contar que “a mágica do papai deu mesmo certo, [pois] olha mamãe eu estava descoberto, mas meus pés continuaram quentinhos”.
[segundo – 28/08]

Chorei que nem gente grande. Muito mais por saber que no domingo à noite me separaria de minha família novamente.

Então, para tentar suavizar a dor de mais uma despedida, resolvi dar seqüência à estória da capa mágica invisível. Costurei algumas referências pessoais com estórias que o João já conhecia e acho que consegui fazer uma bela capa para presenteá-lo.

Primeiro fui me inspirar na estória da capa da invisibilidade (invisibility cloak) de Harry Potter. Quem leu o livro a Pedra Filosofal vai se lembrar que Harry recebe a capa como um legado de seu pai James. Ela é oferecida ao Harry como uma forma de proteção na ausência dos pais (que estão mortos há anos), embora ele a utilize para correr mais riscos. A capa do Harry, no entanto, não pode protegê-lo de todos os feitiços e de qualquer outra forma de agressão física (no último livro da série a gente fica sabendo que a capa é uma das Relíquias da Morte).
A capa que eu fiz para o João Pedro (e também para presentear o Antônio, quando fizer 4 anos) é bem mais poderosa que a do Harry, porque para criá-la tive uma ajuda divina. Na verdade, duas ajudas: de Nossa Senhora do Calvário e de São Jorge de Ogum. É que ainda criança, menininho, minha mãe me garantiu que a Virgem Santa do Calvário — protetora do Colégio em que estudei a vida inteira — me colocaria debaixo de seu manto protetor e impenetrável sempre que eu estivesse ou me sentisse em perigo. E não é que funcionava? Pois quando sentia medo no escuro do quarto era só cobrir a cabeça com o cobertor imaginando que um pedaço do manto me guardava. Usei esse “meu pedaço” para fazer a capa do João.

Por fim, bordei com uma linha cor de prata aquela conhecida oração de São Jorge de Ogum (tão divinamente interpretada pelos Racionais Mc’s) no centro da capa e, assim, transformei o manto numa armadura extremamente leve, maleável e indestrutível.

Antes de ir embora para Brasília, como registrado acima, coloquei cerimoniosamente a capa sob os ombros do João e amarrei, como se praticasse um ritual. Ele me perguntou se podia nadar com a capa. Eu respondi que ele não precisa tirá-la para nada, inclusive nadar. Aí ele me perguntou se podia mostrá-la para o seu melhor amiguinho na época e eu lhe respondi que, como a capa era invisível, o seu amiguinho não poderia vê-la, mas apenas acreditar nela.

Pude voltar para Brasília um pouco menos carregado. E assim, um pouco mais leve, fiquei até o almoço do dia 31 de agosto. Como de costume, naquela segunda-feira fui comer com um grande amigo que me ajudava a fazer a transição dolorosa entre as cidades. Contei com empolgação a hestória da capa mágica invisível e falei com entusiasmo da fé do João Pedro.

Mas ao invés de se congratular comigo pela criação (como esperava), meu amigo franziu o cenho para me repreender:
“E se o amigo resolve atirar uma pedra nas costas dele só para testar a capa?”
“E se o João resolver parar um caminhão com o poder da capa?”
“E se ele tentar voar com a capa?”
“E se...”

“Pode parar”, interrompi e reagi de imediato: disse um palavrão e pedi que ele batesse na boca. Mas, no fundo, fiquei preocupado. Mudamos de assunto porque ele sacou meu drama.

Voltei para o trabalho ensimesmado, considerando os riscos que o João poderia correr só por causa das minhas invenções. Passei o dia meio desligado pensando numa maneira de consertar o que havia feito.

De noitinha, antes de telefonar para a Mi, conversei com um outro grande amigo sobre minhas preocupações, já me sentindo culpado pelo que eu imaginava que pudesse acontecer (cabeça de pai...). E não é que o Damião conseguiu me tranqüilizar? Daquele seu jeitão incrédulo desenvolveu um raciocínio tão cheio de referências significativas para mim (e para ele), citando Kolberg e dando exemplos pessoais, que acabou me convencendo que o João Pedro possuía maturidade suficiente para não se meter em enrascada por causa da capa. Não sem antes, contudo, me perguntar se eu conhecia um filme chamado Crash. “Não”, respondi. Ele ficou visivelmente intrigado porque, nesse filme tinha uma estória exatamente igual a que eu contei, inclusive (ele se lembrava) com o ritual solene da entrega da capa. Daí ele me contou o surpreendente fim da estória e eu fiquei novamente em dúvida sobre o que fazer com a capa.

Resolvi ligar para a Mi e tudo se resolveu; aliás, como sempre. Foi o João Pedro que atendeu o telefone para me perguntar se ele poderia guardar a capa. “Por que?”, perguntei. Ele respondeu: “— Porque eu não quero que estrague”. Parece incrível, mas era a deixa que eu precisava para tentar melhorar as coisas.

Falei, enfim, que ele podia guardá-la quando quisesse [a mamãe sabia desamarrar], mas que a capa não estragaria com o uso. A capa mágica invisível só estragaria, disse, se você usá-la sem necessidade, sem que você esteja realmente em perigo. Pensei em dar exemplos, mas no mesmo instante descartei para não dar idéia errada. Concluí reforçando que a capa o protegeria de todos os males, desde que ele continuasse sendo um moleque bom e obediente.

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Sosseguei tanto que fui me lembrar de assistir o filme Crash quase um ano depois (peguei em junho deste ano na locadora da “Tia Tati”, que já foi Megamil e agora é 100%). Fiquei ao mesmo tempo estarrecido e feliz com coincidência das estórias e a semelhança das capas.

Selecionei abaixo os dois trechinhos do filme em que a capa é a protagonista principal para quem quiser conferir. Como não tem legenda, segue uma sinopse das cenas:
Em sua casa Daniel conversa com sua filha, Lara, que está escondida debaixo da cama por ter ouvido o barulho de um tiro (do bairro violento). Para confortar Lara, Daniel lhe dá uma “capa invisível e impenetrável”.
Um cliente insatisfeito (é mais do que isso) aborda Daniel quando ele está chegando em casa do trabalho. Lara vê o pai sendo ameaçado com uma arma apontada para o seu peito e corre para protegê-lo com a capa. Assim que ela se joga no colo de seu pai a arma é disparada e Daniel sofre por acreditar que ela foi atingida. Mas Lara está ilesa como se o tiro não tivesse penetrado (noutra cena do filme descobrimos que eram balas de festim). Daniel, chorando, sai carregando sua filha nos braços ao encontro de sua esposa.

http://www.youtube.com/watch?v=KDW1tnr4Auk

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