quinta-feira, 7 de março de 2013

O bicho homem

“Papai, por que você está triste?”
Primeiro o Antônio. E depois o João Pedro me fez essa mesma pergunta enquanto jogávamos futebol nesse ultimo domingo.
Os dois estavam intrigados com o fato de eu estar brincando de cara fechada, taciturno e sem alegria.
Disse que não estava triste, mas apenas sério.
Não colou, é claro. Afinal, moleque bom, safo, não se engana assim facilmente. Na verdade, nem era essa minha intenção.
Apenas não queria encompridar a conversa, porque, por um lado, eu não sabia (naquele momento) explicar a eles a razão exata de minha tristeza. E, por outro, não queria que eles ficassem preocupados e imaginando o que poderiam ter feito de errado para me deixar daquele jeito.

Sim, estava triste. Apesar de ter vivido em família mais um final de semana de muita felicidade. Como de costume, felicidade simples, ou seja, aquela que alcançamos conversando, cozinhando, vendo tevê até mais tarde, passeando, brincando, enfim, simplesmente por ficarmos o tempo todo juntos.

E fiquei triste até a noitinha quando, depois de colocar os meninos pra dormir, pude conversar com a Mi e, então, compreender a causa de minha tristeza: enquanto almoçávamos na 104 Sul, os meninos brincavam com uns galhos cortados no gramadão que fica nos fundos do restaurante. De longe, lancei meu olhar rastreador-vigilante sobre entorno e notei uma pessoa mexendo no lixo, a uns 150 metros dos meus filhos. Já fiquei alerta. Quando essa pessoa, que aparentava ser um morador de rua, começou a se deslocar na direção dos meninos, de imediato me levantei e fui me colocar bem ao lado dos dois feito cão de guarda. Até aí tudo bem, pois, poderia dizer que a reação foi quase instintiva. O problema começa, ou melhor, a tristeza, quando o homem passa por nós desapercebido e eu finjo que não o percebo.
A situação fica ainda pior quando atravessamos a rua para tomar sorvete e pagamos por cada copinho o valor de R$ 10,60. Foi nesse instante, sem exagero, que me dei conta do que havia acabado de acontecer.

Poxa vida, como pude ser tão dissimulado? E pensar que há 15 anos eu trabalhava justamente para que a população de rua de Belo Horizonte deixasse a invisibilidade e pudesse ocupar espaços públicos na condição de gente e nao de lixo ou coisa que o valha. Sequer fui capaz de lançar um cumprimento, um aceno. O que teria acontecido comigo? Se eu digo o tempo todo que a paternidade fez de mim uma pessoa melhor, por que teria agido dessa forma?

Ainda não tenho respostas, embora venha pensando bastante sobre o que se passou no domingo e, principalmente, em mim (nos últimos anos?).
Ocorreu-me apenas os versos daquele poema "O bicho" de Manuel Bandeira:

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.



O bicho homem era eu.

Rio, 27 de dezembro de 1947

Talvez esse homem seja eu.

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