sexta-feira, 16 de julho de 2010

Classificação indica-ativa - "Pro dia nascer feliz" de João Jardim

“Pro dia nascer feliz” de João Jardim é um daqueles filmes-documentários que faz a gente refletir um bocado sobre o nosso país. O melhor é que ele bota pra pensar sem aborrecer; não é um filme enigmático e sinuoso que quando acaba não sabemos ainda se gostamos.
É mesmo gostoso de assistir. Embora seja tão claro e contundente quanto o são as desigualdades que documenta.
O filme aborda a relação de adolescentes com suas escolas: de um lado o pobre Brasil das escolas públicas e, do outro, o Brasil rico das escolas particulares de São Paulo.
Diante de tantas diferenças e de tragédias iminentes, até dá para passar despercebido o depoimento de uma garota rica — aluna do Colégio Santa Cruz de São Paulo —, que vivencia dificuldades na conclusão do ano letivo (não tem média para aprovação e, por isso, depende da decisão do conselho de classe). Num desabafo, a adolescente responsabiliza seu pai, em especial, por parte das confusões e das incertezas que ela experimenta. Revela que se sente enganada (não me lembro se ela usa essa palavra) por ter descoberto que seu pai era ateu, embora tivesse estudado, como ela, no tradicional colégio católico. “Como seu pai pôde fazer com que ela passasse “a vida inteira” (ela deve ter uns 16 anos) acreditando num Deus que para ele não existe?”, é a indagação da adolescente e o mote deste texto.
Não é preciso ser a Maria Rita Kehl ou a Rosely Sahão para perceber que há mais coisas entre um pai e uma filha do que a lente e a poesia de João Jardim poderiam revelar. Mas só mesmo psicólogas tarimbadas para avançar por esses desvãos de nossa existência. Eu paro por aqui.
Na verdade, daqui pra frente, sigo por outro caminho. Quis apenas aproveitar uma passagem singela de um filme profundamente singular como ensejo para explicar aos meus filhos que o importante é ser “do bem”, é ser capaz de amar até quem não te ama, tão somente porque isso faz — e nos faz — bem; independentemente do que diz essa ou aquela religião. Afinal, o que é melhor ensinar aos nossos filhos: ajudem aos injustiçados porque devemos repudiar a injustiça e a desigualdade ou ajudem-nos porque assim o Criador os recompensará (ou punirá por não ajudar) [A Emiliane diz que as opções não são excludentes; para ela a crença em Deus amplia as nossas possibilidades. Como me refiro aos nossos filhos, fica registrada a opinião equilibrada da mãe].
Mesmo tendo certeza que meus filhos receberão uma educação muito melhor do que o resto do mundo — todo pai acredita nisso — e, por isso, nunca terão motivos para que se sintam enganados nem por mim e muito menos por minha esposa, é bom botar os pingos nos “is” de uma vez por todas.
Vejam bem, não estou aqui para promover o ateísmo. O texto não quer estimular ninguém a ser ateu. Até porque se hoje, como pai, eu pudesse escolher, certamente preferiria acreditar que a morte é apenas “a” passagem para o Reino de Deus. E quem não gostaria de crer na “comunhão dos mortos”? Quem em sã consciência não escolheria o conforto da crença no reencontro com seus filhos depois da morte?
Saber que a morte acaba com tudo o que somos é a maior desvantagem de ser ateu. Mas justamente por reconhecer essa desvantagem me sinto obrigado a sustentar que não há mal nenhum em não acreditar em Deus. Muito antes pelo contrário, sinceramente acredito que os ateus são mais propensos a fazerem o bem, porque eles sabem que se não fizerem, “Ninguém” o fará por eles.
Também não quero e não posso generalizar: embora eu não conheça nenhum, deve ter um bocado de ateu ruim, que não está nem aí para os outros. Mas basta abrir a janela para ver que, atualmente, não é a falta de fé que tem promovido matanças e sofrimentos no mundo, mas, digamos, o excesso.
Agora, se o ateu possui uma imensa desvantagem por não viver a doce ilusão da vida depois da morte, por outro lado tem uma vantagem igualmente relevante em relação aos demais seres humanos. Diria até uma vantagem moral e profissional em relação aos crentes: é que um ateu não consegue, ainda que queira, fazer “carreira política” no Brasil. Neste país em que a esmagadora (e põe esmagadora nisso) maioria da população acredita em Deus, ser ateu é ser “a toa”, isto é, alguém que não merece confiança. Sequer um voto.
            Num artigo publicado no Estadão, há uns três anos mais ou menos, Sam Harris, um historiador norte-americano ateu, afirmava que nos “EUA ser ateu virou um total impedimento para a carreira política”. Fernando Henrique Cardoso precisou perder em 1985 a prefeitura de São Paulo para Jânio Quadros, depois de declarar-se ateu num debate na tevê, para descobrir que por aqui também se aplica o impedimento. Para virar presidente não sabemos se deixou de ser ateu ou se deixou de lado os escrúpulos que tinha.
Esse mesmo autor, nesse mesmo artigo, relacionava contra-argumentos e razões de sobra para refutar a idéia generalizada de que um ateu é um ser humano diminuído ou uma pessoa sem fé. Vale a pena conferir aqueles que me parecem principais:
Os ateus não vêem sentido na vida
Pelo contrário: são os religiosos que se preocupam freqüentemente com a falta de sentido da vida e imaginam que ela só pode ser redimida pela promessa da felicidade eterna no além. Os ateus tendem a ser bastante seguros quanto o valor da vida. A vida é imbuída de sentido ao ser vivida de modo real e completo. Nossas relações com aqueles que amamos têm sentido agora; não precisam durar para sempre para tê-lo.
Os ateus são arrogantes
Quando cientistas não sabem alguma coisa, eles admitem. Na ciência, fingir saber o que não se sabe é falha grave. Mas isso é o sangue vital da religião. Uma das ironias do discurso religioso é a freqüência com que as pessoas de fé se vangloriam de sua humildade e, ao mesmo tempo, alegam saber fatos sobre cosmologia, química e biologia que nenhum cientista conhece. Quando consideram questões sobre a natureza do cosmos, ateus tendem a buscar suas opiniões na ciência. Isso não é arrogância. É honestidade intelectual.
Os ateus são fechados à espiritualidade
Nada impede os ateus de experimentarem o amor, o êxtase e o temor.
Os ateus não têm moral
Contra essa acusação de que os ateus são amorais, juro, não me lembro exatamente da resposta que o historiador deu; mas me recordo que não era muito polida. Já que submeter a moral à religião é uma redução violenta e grosseira.
            Por tudo isso quero que meus filhos tenham plena convicção de que não há mal nenhum em ser ateu. O que importa é fazer o bem para as pessoas que amamos e também para aquelas que (ainda) não amamos. O fundamental é ter fé na capacidade humana de atribuir sentidos à vida em sociedade e construir nossa própria história.
E se tiverem dúvidas sobre qual o caminho a seguir, espero que meus filhos conversem com as outras pessoas, consultem os livros, vejam os filmes (“Pro dia nascer feliz”, é uma bela sugestão), verifiquem o que dizem as leis (sobretudo a Constituição) e, então, sigam felizes, porque, afinal, o caminho certo não existe, somos nós que o fazemos enquanto caminhamos.

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