segunda-feira, 12 de julho de 2010

Intra-uterinas (memórias de fora pra dentro da barriga)

            Na conversa anterior lhe ofereci uma música de boas vindas para que você possa ir se acostumando com a idéia da passagem do útero para o mundo. Dizem que não há lugar melhor para se viver do que a barriga da mãe. Os psicanalistas chegam a descrever até uma espécie de trauma do nascimento. É claro que não tenho lembranças dos nove meses em que permaneci no ventre de sua avó, mas a julgar pela ligação que temos com as nossas mães não tenho dúvidas de que deve se tratar de um excelente lugar (um pouco apertadinho talvez: fiquei impressionado com uma ultra-sonografia especial pendurada feito um quadro na parede da clínica em que fizemos sua segunda ecografia — quando vimos seu coraçãozinho piscar na tela —, nela aparece um bebê, já pronto para nascer, tão comprimido pelo espaço que as canelas ficavam juntas de suas orelhas tal qual se vê em exibições de contorcionismo).
            Tudo bem que nosso mundo não é dos melhores — você sempre ouvirá dos mais velhos que o mundo, antigamente, era muito melhor —, mas para quem nasce no seio de uma família de classe média como a sua tudo lhe parecerá muito bom. Infelizmente, tenho que lhe dizer que há muitas crianças neste mundo pauperizado, neste nosso país miserável, que se conseguirem sair sãs e salvas do ventre de suas mães dificilmente chegam ao primeiro aniversário. Mas, não devo lhe falar de tristezas agora, senão corremos o risco de você não querer sair.
            Pode vir, pode chegar que do lado de cá você encontrará muito amor, muito carinho e uma porção de coisas lindas para fazer.
            De uma coisa você pode estar certo meu filho: todos nós, seus pais, seus avós, seus tios e tias, seus primos e primas, que já lhe amamos assim em pensamento, do momento em que sua vinda foi confirmada, passamos a nos esforçar muito mais para transformar este mundo num lugar digno de acolhê-lo.
            Sua chegada fortifica nossa crença de que podemos mudar o mundo, de que a vida pode ser ainda melhor para todos, sem distinções de cor, credo, sexo ou classe. Daqui em diante, você é o sentido maior pelo qual continuamos lutando contra as injustiças, contra todas as iniqüidades.
            Acho que é por isso que desde manhã estou cantando uma música que há anos não cantava com tanto gosto (sempre gostei de cantar desde muito pequenininho, mas atualmente tenho cantado muito, muito mais porque, é claro, você me inspira). A canção é assim:
Você lembra, lembra naquele tempo eu tinha estrelas nos olhos e um jeito de herói era mais forte e veloz que qualquer mocinho de caubói.
Você lembra, lembra eu costumava andar bem mais de mil léguas para poder buscar flores de maio azuis e os seus cabelos enfeitar.

Escrito em 24 de maio de 2003

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