terça-feira, 7 de setembro de 2010

Intra-uterinas (memórias de fora pra dentro da barriga)

            Acho que vou parar de ficar lhe contando as histórias que escrevi ao longo destes anos. Talvez eu não esteja lhe agradando como imagino.
            Penso até que posso estar abusando de sua paciência. Ou mesmo de sua capacidade de compreensão do pai que tem.
            Para que você entenda — se puder —, esta minha necessidade de ir lhe contando cada fração da história que pude registrar, sem muito estilo ¾ eu admito ¾, é preciso que eu lhe confesse que sou um escritor sem livros. Embora faça mais de dez anos que eu desejo escrever um.
Lá pelos dezesseis anos comecei a dar ao desejo contornos de um grande projeto. Inspirado pelo “ABC de Castro Alves”, de Jorge Amado, decidi que contaria em meu primeiro livro a história de minha vida; nada mais, nada menos: às favas com a modéstia e a auto-crítica, escreveria uma Auto-Biografia romanceada. Podia ter planejado reescrever o Evangelho de São Lucas, mas estava convencido de que a vida de Cristo não poderia ser mais interessante que a minha.
Não se assuste, meu filho, que a adolescência só não nos transforma em narcisos por obra e graça das espinhas (logo lhe digo que a acne teve um papel crucial em minha formação).
Fui então coletar os dados biográficos para o livro e, finalmente, descobri que havia muito pouco a contar de interessante. Mas não me dei por vencido, decidi que dali em diante levaria uma vida digna de ser narrada. Esta certamente foi a decisão que mais me impulsionou na juventude: é que me empenhando em viver para ter o que contar acabei tomando muito gosto pela vida.
Hoje, às vésperas dos trinta anos de idade e alguma maturidade nas costas, posso até admitir que não me faltam fatos e registros para compor minha própria história. É verdade que três décadas não é lá idade suficiente para a boa literatura, que via de regra, é tardia. Mas hoje também sei que entre os fatos e o romance, falta muita coisa. Principalmente, falta-me a capacidade de escrevê-lo.
Conclusão: agora que tenho você para conversar, assim tão disponível, fico tentado a ler alguns registros que fui acumulando. Pode ser que lhe interessem. Quem sabe? Sua mãe diz que sim. Eu desconfio que não. Ainda que eu espere exatamente o contrário.
De qualquer forma quero que fique a vontade para me dizer, ou melhor, para demonstrar — seja em sonho ou por qualquer outro tipo de manifestação visual — se lhe aborreço. O fato é que você tem um pai que é mais um daqueles escritores sem livros. Sou, confesso porque esta é minha sina, um pensador de livros que jamais serão escritos.
Uma pergunta que você poderia estar se fazendo agora é: O que explica este desejo de escrever ou ser escritor?
Eu sinceramente não sei. Mas li, há alguns anos, um texto de jornal que buscava explicar as motivações de um escritor de livros recorrendo às categorias da psicanálise. Mais ou menos, a psicanalista dizia que são três as motivações (imbricadas na maioria das vezes) que justificam um livro: primeiro vem a suposta quantidade e a qualidade das experiências vividas por seu autor, logo depois ,a suspeita de que tais experiências possam ser do interesse das pessoas, em geral, e, por fim, em terceiro, resta a certeza de que o registro literário de uma vida é, para muitos, a única possibilidade de sua perpetuação, de sua projeção para além de seus limites físicos.
Acho que ela tem razão; apesar da psicanálise. Bom ao menos no meu caso, parece que esta explicação faz sentido, ao menos em parte. Quanto aos escritores que pude conhecer ao longo destes anos, tenho fundada suspeita de que isso também seja uma verdade.
            Mas como toda explicação geral, a da psicanalista é apenas parcial. Porque ao mesmo tempo em que se aplica à maioria dos casos, não consegue explicar cada um deles em sua totalidade, ou não consegue ir além daquilo que os livros (e seus escritores) guardam em comum.
            A parte que nos falta, e que, portanto, devo aqui tentar explicar complementa a terceira motivação apresentada: a de que a gente escreve para superar a morte. Então, surge a pergunta: Mas perpetuar-se para quê?
            Bom, em meu caso, acho que sempre escrevi para que você pudesse me conhecer, sobretudo na hipótese de eu deixar de existir antes ou pouco depois de você nascer. No fundo, sempre pensei em projetar existências em livros ou por escrito para que, transpondo esta nossa condição humana e mortal, pudesse estar, todo tempo, ao alcance de meus filhos.
            Há tempos que venho dizendo ter apenas duas vocações na vida: ser pai e ser professor. Pensando melhor, agora com você tão próximo, creio que só tenho uma vocação: ser seu pai. Claro que continuarei sendo professor — não sei se lhe disse que esta é minha profissão — mas, hoje, tenho claro que a docência foi a ante-sala da paternidade. A alguns alunos cheguei a dedicar uma atenção filial, o que também me levou a escrever (não só livros sobre introdução ao Direito; lembra da carta de meu aniversário que eu lhe mostrei há uns dias atrás?), porém não com a mesma paixão e com a mesma necessidade que sinto agora.

Escrito em 3 de junho de 2003

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